23 de dezembro de 2012

E OS ANJOS VIERAM

ilustração de Carla Antunes

Desanimado quando perdeu o emprego, desesperado quando a mulher o deixou, em pânico quando não conseguiu pagar dívidas contraídas, decidiu fechar a vida, no dia 21-12-12, dando cumprimento à profecia do fim do mundo. Descia à terra, observado pelos rostos constrangidos dos poucos amigos que lhe sobraram. Ainda a urna não tinha pousado e o milagre aconteceu. 
Gotas caíram. Não era chuva, não era neve, não eram lágrimas. Minúsculos seres etéreos levaram-no de mãos dadas. Era Natal!

8 de dezembro de 2012

A TI, GOVERNANTE


Sou um país pequenino, simpático, cheio de luz. Pacífico e paciente por natureza, neste momento trago o semblante carregado, enrugado de preocupação e ensombrado pelo medo, dúvida e insegurança. 
A todos que me governam e governarão só peço que não me contagiem com a sua incompetência e mediocridade, que não me metralhem com decretos estapafúrdios nem apressados. 
Lembrem-se que eu sou feito de gente. 
Apontem-me o caminho certeiro, coerente, para não sentir vergonha de me chamar Portugal.


O QUE ACABEI DE LER

Para caracterizar Cafuné, o novo livro de Mário Zambujal que, num mês, chegou à segunda edição, usaria: 
Um adjetivo: divertido 
Dois nomes: humor e malandrice 
Três verbos: brincar, gargalhar, viajar (pela História de Portugal) 

Estilo inconfundível e elegante de um autor que gosta de contar peripécias de bons malandros sem que lhe fuja o pé para a chinela: “Só recorda que, sem dar por isso, toda a roupa lhe voara do corpo, aliás, digno de ser visto. Com estranheza se lembrava da passividade, feita de estupefacção, com que deixou andar, e como o bruto roncava encavalitado nela. Assim se foram os três vinténs.” pág. 88 “E também a fidalga tacteou, na zona proscrita em que um homem pode crescer de um momento para o outro.” pág. 88 
Rodrigo é um dos bons malandros, “rapaz parco de posses, se bem que rico em fantasias”. Sofre de “incontinência em matéria de mulheres” (pág. 98) pelo que não lhe escapa um rabo de saia: “Era Rodrigo um rapagão de dezassete anos incompletos mas de largo excedia a estatura do típico português da época. O defeito que se lhe apontava, se defeito podemos chamar à fisiologia de cada um, era o excesso de testosterona, manifestado com exuberância logo no estoirar da puberdade. Testosterona é nome feio e de pouca circulação coloquial. Na sua infinita sabedoria, o povo trocou por miúdos as consequências e assim nasceu o explícito vocábulo tusa.” pág. 33 “Em fase de insuportável privação, Rodrigo recorria ao afamado bordel de Deodata Nalguda.” pág. 34 
Esta sua característica vai conduzi-lo a constantes situações de fuga: “Descansado, todavia, não ficaria ele. Olhar em volta tornou-se precaução habitual, fosse pela zona de Belém ou por lugares mais afastados, como o Chiado e o Bairro Alto.” pág. 75 
No entanto, Rodrigo conhece um ex-frade que se vai tornar o seu mentor espiritual, “tão severo quanto ao uso de termos impróprios e crítico das tentações de Rodrigo, não deixava o antigo frade de estimar tudo quanto fosse beleza, quer se tratasse de flor, pôr-do-sol, quadro, poema ou mulher.” pág. 92 
Narrativa com cruzamento de tempos, cheia de analepses e prolepses: “E nem a cigana húngara que lhes lia as sinas previu que haviam de encontrar-se com um rapazola, pescador no Tejo.” pág. 73 

Um senão, quanto a mim: a personagem principal mantém-se todo o tempo igual a si própria.  Rodrigo é um mulherengo assumido e o leitor espera (pelo menos esta leitora esperou ao longo de toda a estória!) que aconteça, a determinado momento da narrativa, algo que lhe modele a personalidade leviana. Tal não acontece. 

É, no entanto, um romance bem-disposto que dispõe bem o leitor.

5 de dezembro de 2012

DEZEMBRO (E DIFICILMENTE NATAL)

“Entremos, despojados, mas entremos.
 De mãos dadas talvez o fogo nasça,
 talvez seja Natal e não Dezembro,
 talvez universal a consoada.” 

do poema "Natal e não dezembro", David Mourão Ferreira 


Definir o Natal sem usar lugares-comuns será difícil. Definir o Natal 2012, em particular, será mais difícil ainda. 
Natal já não é quando um Homem quer porque até a ilusão lhe estão a roubar. 

Natal é ajudar o próximo. Mas como, se só posso dar caridade? 
Natal é harmonia. Mas como, se não sei o dia de amanhã? 
Natal é paz. Mas como, se nasce dentro de mim a insegurança, o medo, a angústia? 
Natal é amor. Mas como, se cresce o ódio por aqueles que vivem na ignorância, na insensatez, na incompetência e na frivolidade e me querem forçar a viver também assim? 
Natal é seguir a estrela-guia. Mas como, se um nevoeiro cerrado lhe esconde o brilho? 
Natal é família. Mas como, se as famílias vizinhas não estão bem porque em suas casas há desemprego, há fome? 
Natal é alegria. Mas como, se todos os dias vejo e ouço o que me faz doer a alma?1

É dezembro e, para muitos, dificilmente será Natal. 

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1 Acabo de ver e ouvir no telejornal da RTP1: 
“Uma mulher tem cinco bocas para alimentar. Ficaria sem almoço se não lhe dessem comida, num refeitório social.” 
“Há crianças que só têm uma refeição por dia, a que comem na escola.” 
“Isabel Jonet está muito preocupada com os pedidos de ajuda social.” 
“Há muitos portugueses que não aguentam mais austeridade.”

3 de dezembro de 2012

RADIO INFORMEDIA

Sábado dia 1, a minha presença no primeiro aniversário do grupo "Voz dos sentidos" na Rádio Informedia.


Watch live streaming video from informedia at livestream.com

2 de dezembro de 2012

CLUBE DE LEITURA

A Biblioteca Municipal de S. João da Madeira criou um Clube de Leitura ao qual aderi. Com encontros mensais (última quinta-feira de cada mês, pelas 21h30) o grupo reúne-se em torno de um livro para troca de impressões. A primeira sessão decorreu em outubro passado e o protagonista foi Livro de José Luís Peixoto. A segunda, decorreu na passada quinta-feira e coincidiu com a apresentação do último livro de Mário Zambujal, Cafuné, na presença do autor.



24 de novembro de 2012

O QUE ACABEI DE LER

“A mãe pousou o livro nas mãos do filho. 
Que mistério.” 
Assim começa o romance. 
Este livro, deixado ao filho pela mãe, é o fio condutor que leva o leitor a entrar na ação e a desenvencilhar as linhas cruzadas que unem as vidas complexas das personagens, num país onde, entretanto, entrou a liberdade: “25 de abril de 1974 Ao fim da manhã, enquanto ela recolhia a roupa do estendal da casa de banho, já seca, o Constantino entrou esbaforido a dizer que estava a rebentar um golpe em Lisboa. A Adelaide sentou-se num bordo da banheira, a ouvi-lo. Não o entendeu logo.” 

Este livro percorre toda a primeira parte do romance e revela-se na segunda parte como sendo o Livro. E o mistério resolve-se para dar lugar a uma viagem pela Literatura universal. 

A ação decorre no mundo rural português da ditadura e o narrador, aparentemente heterodiegético, desnuda, de forma subtil e elegante, temas cruéis como o abandono de um filho: “Os olhos da mãe ficaram parados nos do filho até ao instante em que o seu corpo se virou e se afastou, regressando por onde tinha acabado de chegar.” (página 17); o trabalho infantil: “Havia quem atravessasse a vila para ver uma menina de onze anos a coser à máquina, cheia de desenvoltura.” (página 47); o incesto: “Quando aquilo começou a acontecer, ela não sabia do que se tratava, tinha onze anos e a mãe fazia-lhe pequenos vestidos para as colheres de pau. (…) Mais tarde, mais velha, quando aquilo estava a acontecer, ela facilitava os movimentos do pai, conhecia-os. (…) A mãe estava viva e, depois, a mãe morreu, nunca contariam a ninguém, e ele não parou. Ficou enjoada, ficou prenha, e ele não parou” (páginas 48/49); a gravidez precoce e o aborto: “Então, houve um momento em que toda a escuridão do quarto entrou dentro dela, encheu-a. Envelheceu. Quando o seu corpo rejeitou o que poderia ser uma criança e todo o seu sangue morto, a Lubélia ainda tinha dezassete anos, mas já era velha.” (página 79); a masturbação juvenil: “O Cosme tinha já as mãos dentro das ceroulas. Quando o Ilídio e o Galopim meteram também a mão dentro das ceroulas, houve um cheiro a transpiração, a pila mal lavada, que aqueceu o ar do barracão ligeiramente.” (página 31); a fuga para França: “Quase não se despediu da tia. A velha Lubélia estava a receber o calor do lume quando lhe bateram à porta. A Adelaide abriu e, na rua, no escuro, estava um homem parado a olhá-la. Quando lá chegares, escreve-me um postal.” (página 89); “ O que seria a França? A Adelaide sabia três coisas acerca do país para onde se dirigia” (página 105); o regresso dos emigrantes para passarem as “vacanças”: “Em chegados, o Cosme podia começar a queixar-se dos fogos ruges, das embutelhagens ou das auto-rutas. O pai dele mantinha um sorriso de não entender e o Cosme murmurava-me: É muito anciano, está próprio para toda a sorte de maladias.” (página 232) 

Livro é uma estória de culturas desencontradas. Emigrantes que partiram para França e querem regressar a Portugal. Filhos de emigrantes que nasceram em França e querem para lá voltar, rapidamente, quando estão de férias em Portugal. 

Livro é uma estória de amor, também ele desencontrado: “Se namorares comigo, dou-te um pombo, cem escudos e um livro.” (página 60); “Assim que chegou à França, escreveu uma carta ao Ilídio, Meu amor, não imaginas o quanto te quero bem, mas não recebeu resposta. Escreveu outra, Meu amor, estás zangado comigo?, mas também não recebeu resposta.” (página 143); “O Ilídio tinha esmorecido depois das cartas que escrevera à Adelaide e ao Josué.” (página 146) 

É um romance de escrita criativa, cheia de beleza: “Entrava uma estrada de luz pela porta aberta do barracão da palha. A tapada estava cheia de janeiro. Sem chuva, só a ameaça, o frio crescia dentro das pedras. Também as árvores eram feitas de frio até ao momento em que ardiam no lume e subiam pela chaminé de todas as casas da vila. A tapada cheirava a janeiro.” (página 31) 

E tem um final surpreendente. Daqueles que deixam o leitor a olhar para o livro e a perguntar-lhe qual te vai substituir?

Livro, José Luís Peixoto, Quetzal, 3ª edição, outubro de 2010

23 de novembro de 2012

ENCONTRO COM ALUNOS NA BM DE S. JOÃO DA MADEIRA

A biblioteca Municipal de S. João da Madeira associou-se às bibliotecas escolares, em outubro, para celebrar o livro e a leitura.


Convidada para uma conversa com alunos do 5º ano, foi com muito agrado que lhes pude falar de alguns livros da minha  vida, sobretudo os da minha infância e juventude que guardo religiosamente.
E, como não poderia deixar de ser, a conversa terminou com os livros que escrevi: Do cinzento ao azul celeste (2009) e O santo guloso (2012), ambos ilustrados por Helena Veloso e editados pela Calendário de Letras.

12 de novembro de 2012

VENTO QUE AS LEVE!!!

A melga escanzelada voou uns quilómetros ao encontro da melga anafada para lhe pedir ajuda. 
-Não aguento a penúria, não tenho mais onde sugar! 
-Isso pensas tu. Sê esperta, faz como eu! 
Obedecendo-lhe cegamente, picou e sugou onde pensava já não ser possível. Mas continuava escanzelada e cada vez mais subserviente à medonha melga gorda. 
Desanimada, questionou: 
- Eu sugo, sugo, e tu é que engordas? 
A resposta não veio. 
Veio o vento. Zangado soprou, nenhuma escapou. 

                                                                                          



                                   (desafio nº24 da Margarida Fonseca Santos)

QUEM MUITO FALA...

O doutor Leitão sabe tudo (pensa ele!) e nunca se cala. Apetece-me enfiar-lhe uma rolha, goela abaixo, ou pisar-lhe a língua, num almofariz, para o calar.
Parece programado, como despertador que não se atrasa, para dar todas as respostas, a qualquer hora. Como bola de ténis, as suas palavras voam, arremessadas com violência. E fala, fala. O que diz pica, qual vespa viperina. Que papel grotesco!
Apenas ignora que “quem muito fala dá bom dia a jumento”.

(desafio nº23 da Margarida Fonseca Santos)

6 de novembro de 2012

OUTONO



Há já algum tempo que ganhei o hábito de andar sempre com a máquina fotográfica na carteira. Compensa o peso. Nunca se sabe onde está a imagem, o momento, o inesperado, a simplicidade que vale a pena reter.
Trazer a máquina na carteira obriga a olhar e a ver o que normalmente passaria despercebido. Pormenores. Bocados.
No entanto, as cores do outono não passam despercebidas. Fulgurantes, arrebatadoras, chamam a atenção, pedem para serem fotografadas como modelos que sabem de cor a pose a fazer na passerelle.
Não entendo as árvores que se vestem de cor para, logo de seguida, se despirem e despedirem das suas roupagens.
Gosto de cores que enfeitiçam os olhos. E gosto de romãs e de diospiros. Outono é isto.





26 de outubro de 2012

"CADAVRE EXQUIS"

Foi com muito agrado que, em setembro passado, participei neste cadavre exqui, que circulou por quem andava nos jardins do Palácio de Cristal, durante o festival organizado pelo Bairro dos Livros, no qual o grupo do Clube de Leitores teve um papel preponderante.

Um "cadáver esquisito", em francês cadavre exquis, é um jogo coletivo inventado por volta de 1925 em França pelo movimento surrealista, pretendendo subverter-se o discurso literário convencional.  
Como funciona? Cada pessoa escreve duas linhas, dobra o papel tapando a primeira e deixando à vista apenas a segunda, e o autor seguinte continua o texto, sem a menor noção do que foi escrito. 
O resultado é hilariante.

"O Jardim é um palácio que floresce entre pavões e bancos
Confusões e felizes prantos que nos habitam o interior
Das recordações dos disparates e da evolução do mundo, que
Avança com ou sem razão das esperas que não acontecem
Pois o tempo, ou a falta dele, esse é o grande problema.
Estas esperas devem pois, ser bem calculadas.
Pois agir sem pensar não é de todo aconselhável
Assim, vejamos a situação:
O corpo estava a entrar em decomposição.
A cara estava branca, gelada, apesar do calor da noite.
A solidão estava marcada, bem presente.
E sono, muito sono realmente!
É no estado em que o homo sapiens se tem encontrado
Desde o início da sua civilização
Não interessa
Tudo era natureza
Tudo era morte
Tudo se torna em veludo azul
A coisa mais rara neste mundo, as pessoas pensarem por si próprias.
É raro mas quando acontece é mágico.
É assim que vivemos, sorrimos e amamos.
Por isso vamos a isso.
Mas cuidado… Os lobos e as meninas andam por aí
E sabem sempre o que querem!
Mas o que quererão afinal?
E será que alguma vez o saberão?
Essa é a questão filosófica que se impõe!
Essa e a questão da origem do universo das bandas desenhadas
que surgem nas bancas das papelarias sem ninguém saber como!
Como é que ninguém sabia dessa porcaria!
Tanta coisa para nada!
Aumentando a vontade de conquistar o infinito, sem porém
Julgar a vontade do(s) outro(s).
E acham-se importantes por fazê-lo!
Acho graça a essa gente, a nossa gente.
A nossa gente é capaz de tudo.
Andar desalinhada, só isso!
No dia em que descobrir o seu próprio poder, tudo acontecerá!
Somos uma gente capaz! Capazes!
A propósito de capazes, acho que ou capaz de comprar uma bimby…
Ando a pensar nisso há tempo… Acho que vou…
Comprar o tal livro da selva e, mergulhando na sua leitura
Vou viver a aventura que ele me sugerir
Não sei o que vi nele, nem o que me atraiu. O olhar transparente?
O sorriso nos lábios grossos? Não sei. Em todo o caso, embarquei na aventura.
O primeiro dia foi repleto de medos, inseguranças… e à medida que
O dia ia passando mais eu me libertava destes medos e deixava a energia
Fluir, e um sorriso aparecia na minha cara.
«Mandato de despejo aos mandarins da Europa! Fora!
Se quiserem ficar lavem-se!»
E lavem-se de preconceitos e opiniões
Lembra-te que é hoje!
Sim, hoje, porque é hoje que estás a ler isto.
Aliás, agora!!! Acabei de ler e vou “desencanar” o burro.
Alea jacta est! “Alea jacta est”.
Afirmação de boa memória e omnipresente
Nos livros de Asterix, que me encheram a infância.
A infância, aquele tempo em que não tinha horários e passava
O tempo a brincar!! Além do Asterix, havia a pequena sereia.
Mas o meu preferido era o Bocas. Um boi vermelho, vestido com
uma jardineira de botões amarelos. A sua melhor amiga, a tartaruga Mike
ficou muito feliz ao saber que o jardim estava lindo e cheio de flores.
Ao ver tudo aquilo quis abraçá-la e agradecer para todo o sempre.
No sempre a eternidade do amor e a salvação!
Mas um belo dia o canto de jades esfumou-se.
O encanto foi-se.
 E ele ficou com uma caixa cheia de sonhos vazios.
Pensou como gostava dela…
Como ela era injusta.
Nunca preparava o café a meu gosto.
E ainda dizia: “a culpa é tua”.
Mas nem sempre a culpa é nossa!
Não queiras pôr culpas onde não queremos!
Sentimento que inflama, que nos aprisiona.
Perdoa-te e vive com a tua alma por inteiro!"

4 de outubro de 2012

O QUE ACABEI DE LER

Se me pedissem uma única palavra para caracterizar Nunca me deixes, usaria o adjetivo estranho, até ao meio do livro. É estranho o leitor não saber o que são os dadores e os ajudantes. É estranha a educação dada no colégio. É estranho que as personagens tenham toda a liberdade sexual mas não possam ter filhos. É estranho que o colégio tenha um cuidado redobrado com a alimentação das crianças. É estranho o título que não condiz com o conteúdo. Ao longo da leitura, e ligando algumas pontas, fui fazendo as minhas conjeturas sobre o que seriam os ajudantes e os dadores. Acertei. A narradora autodiegética acaba por confirmá-lo. Mas, o papel desempenhado pelas personagens começa a ficar claro e uma ideia surge. Não, não é possível! E é então que se dá o nó na cabeça. O tema é demasiado polémico, não consensual, quase tabu, para ser abordado assim, de forma tão natural. Depois do meio do livro, substituo o adjetivo estranho pelo adjetivo chocante para caracterizar o livro. Foi um choque para mim quando as minhas suspeitas foram confirmadas. Afinal, o título tem toda a razão de ser e está ligado a uma atitude da narradora, enquanto criança, também ela chocante depois de ouvida a explicação. A palavra-chave foi escrita apenas duas vezes em todo o livro. Como se o assunto não fosse importante. Como se fosse muito natural. E é esta naturalidade com que o tema é abordado que faz abanar consciências (algumas, mais frágeis, poderão, mesmo, ficar abalroadas!!!), refletir (muito) e concluir que, afinal, a palavra certa para caracterizar o livro de Ishiguro é perturbador!

26 de setembro de 2012

UM SENTIDO PARA VIDA

Brincar aos anagramas!

Anda atrás de um sentido para a sua vida. Mas, tonta que é, nada a satisfaz e a vida só fará sentido se casar. Tanto se lhe dá que ele seja um mulherengo depravado sem emenda! 
Foi à rasca que conseguiu sacar dele a promessa do tão desejado casamento. Arcas abarrotadas de rico enxoval esperaram, durante um ano, o grande dia. 
O grande dia chegou mas, afinal, mostrou-se curto, muito curto. Quanto às arcas… nunca se abriram.

(desafio nº19 da Margarida Fonseca Santos, 77palavras.blogspot.com)

11 de setembro de 2012

DESISTIR OU RESISTIR?



Passou verão e inverno embrulhada na sua melancolia feita de muitas melancolias tecidas ao longo dos anos. Parou de sorrir à vida. Afastou o brilho do olhar. Deixou de querer. 
Desistir. Verbo medonho! 
Decidi, então, riscar no dicionário a palavra desistir e todas as suas derivadas. Tudo porque ela desistiu da vida e se deixou apagar, dia a dia, qual vela a arder lentamente e a desvanecer. 
Na folha rasurada do dicionário, escrevi em maiúsculas: EXISTIR. RESISTIR.

(desafio nº18 da Margarida Fonseca Santos, blogue 77palavras)

8 de setembro de 2012

LER FAZ MAL? QUEM DISSE?

ilustração de Dulce Esperanza Juárez

 - Não leiam muito, à noite muito menos, faz mal aos olhos. 
Esta era uma frase insistentemente repetida pela avó que se preocupava muito com a nossa saúde. Mas nós éramos leitoras compulsivas. Os livros espraiavam-se por toda a casa. Por onde passávamos, tínhamos um livro a olhar para nós e a suplicar-nos (não muito pois não era necessário!) para lhe pegarmos e o folhearmos e o lermos. 
- Faz mal, uma ova! – respondíamos, olhando-a por cima dos óculos! 

 (desafio nº17 da Margarida Fonseca Santos, 77palavras.blogspot.com)

5 de setembro de 2012

LUTO

Domingo triste. A chuva espreitava por entre os vitrais da igreja cobrindo-os de pequenas gotas, pérolas vindas de longe, há muito esperadas. 
Eva ajoelhou-se e, depois de rezar a primeira Ave-maria, parou de acariciar o rosário. Era demasiado religiosa para ter dúvidas mas, naquele momento, tudo estava em causa. A reviravolta na sua vida e a enorme raiva que sentia provocaram demasiados conflitos interiores e vacilaram a sua fé. Agarrada à aliança, chorou e não mais rezou.


(nova participação no desafio nº17 da Margarida Fonseca Santos, publicado em 77palavras)

1 de setembro de 2012

ESTÓRIA DE AMOR


Estava escrito nas estrelas que seria para toda a vida.
Nasceram em locais opostos do mundo mas foi em Roma que se encontraram e passaram parte do verão. Viram-se, apresentaram-se e… o amor surgiu como avalanche incontrolável.
A lua vestia o seu mais brilhante vestido quando ele lhe colocou o anel no dedo e lhe perguntou:
- Queres ouvir comigo a mesma canção até ao fim das nossas vidas, Lena?
Estava escrito nas estrelas mas eles não sabiam.

 desafio nº17 da Margarida Fonseca Santos (77palavras)

30 de agosto de 2012

MARIA MAR


Ainda faltavam quatro semanas para o nascimento mas ela impôs-se. Nasceu no mar. O marulhar das ondas foi a primeira música que ouviu e que a embalou. Por isso lhe chamaram Maria Mar. Por isso o sol foi o padrinho e a lua a madrinha. Por isso, foi abençoada pelas estrelas. Também por isso, herdou a personalidade inconstante do mar. Ora calma e sossegada, ora irascível e tempestuosa, tal como o mar, viveu livremente, cheia de mistério.

desafio nº16 da Margarida Fonseca Santos (77palavras.blogspot.pt)

28 de agosto de 2012

PRAIA DA FALÉSIA, VILAMOURA - IMPRESSÕES


Quem ruma a sul, mais concretamente à praia da falésia em Vilamoura, com intenção de passar férias isoladas e silenciosas, desengane-se. Mas a confusão é compensada pela enorme biodiversidade humana. 
Gosto de me sentar na areia ou numa esplanada, frente ao mar, e observar. Além do colorido de guarda-sóis, toalhas, cestos, chapéus e biquínis que transformam a praia em múltiplos arco-íris (gosto do branco, na praia, e do amarelo, e do laranja, e do rosa fúcsia), a variedade de pessoas fascina-me. Pessoas altas e baixas, pessoas magras e gordas; corpos esbeltos e bem torneados, corpos atacados pela celulite e por gorduras indesejadas; peles brancas e peles bronzeadas; peles lisas e peles enrugadas, vincadas pelo tempo; peles secas, peles brilhantes, peles pintadas com artísticas tatuagens; cabelos curtos, cabelos compridos que se estendem costas abaixo, cabelos apanhados em longos rabos de cavalo, ausência total de cabelo em cabeças carecas. Velhos, novos, crianças e jovens. E bebés. Bebés na praia, a qualquer hora do dia. E pessoas que chegam depois do meio-dia. E pessoas que passam o dia inteiro na praia e abrem grandes lancheiras donde saem sandes, bebidas frescas e fruta. E batatas fritas, claro!
E a variedade de línguas estrangeiras misturadas promiscuamente com o português (nos seus variados sotaques e regionalismos) encanta-me. “Queres pom?” – é a pronúncia do norte no seu melhor! 
Ouve-se francês (imenso), inglês (bastante), espanhol (muito), alemão (um pouco) apesar de o jornal Expresso desta semana (18 de agosto) trazer um artigo intitulado “Turistas alemães salvam ano no Algarve” (parece que a srª Merquel os enviou para aqui, “que os pobres coitados dos portugueses estão a precisar do nosso dinheiro!”). 
Ouvem-se os pregões dos vendedores que inundam a praia e a transformam num grande centro comercial, alguns até com Multibanco. 
Passam os exuberantes brasileiros vendedores da bolinha de Berlim e da bolacha americana. 
- Olhá bolinha, chegô! Tá chamando, eu vô!
- Chora, nenem chora, que a mamãe te dá a bola! 
- Comê, comê, para crescê! 
Passam outros exóticos brasileiros vendedores de biquínis. 
- Olhó biquíni brasilero originau! 
Passam os tímidos vendedores portugueses. 
- Água, cerveja, coca-cola. 
- Bolacha americana e pastel de amêndoas! 
Passam os discretos e calados indianos vendedores de pratas e vestidos de algodão e os também discretos marroquinos carregados de pilhas de toalhas de praia, carteiras e óculos de sol. 
E o sol vai queimando. E a água fria refresca todos estes corpos, toda esta gente que veio para sul esquecer a crise enterrando-a na areia ou afogando-a no mar.


10 de agosto de 2012

MARCHA NUPCIAL

O desafio nº15 da Margarida Fonseca Santos: escolher um livro de que se goste, abri-lo ao acaso e escolher uma frase, ou parte de frase, que chame a atenção; depois, usar essa frase no texto a criar. 

Adoro Jorge Amado e a Bahia exerce uma forte atração sobre mim. Escolhi Mar morto e, abrindo o livro ao acaso, calhou o início do capítulo "Marcha nupcial".

Praia do Forte, Bahia

O casamento seria daí a doze dias e tudo estava pronto para ouvirem a marcha nupcial. Mas, o condutor embriagado destruiu o sonho. 
Dias depois, enquanto deambulava pela praia deserta, pontapeava a areia com violência, vingando os pensamentos zangados. Fixou o horizonte. Uma mulher de longos cabelos prateados, de espuma vestida, surgiu das ondas. Anjo ou sereia feiticeira? 
Foi prazer o que sentiu quando o mar lhe fustigou as pernas, depois o peito e, finalmente, o engoliu.

VIVER NUM LIVRO

ilustração de Klaas Verplancke

Somos o que lemos. Logo, passámos a fazer parte dos livros e a viver neles. Opto por Jorge Amado para viver no seu Mar morto. Porque a Bahia exerce um fascínio muito grande sobre mim; porque adoro o mar; porque é uma estória de amor de um jovem dividido entre uma mulher e o apelo de Iemanjá que o atrai para as ondas e me atrai também.

3 de agosto de 2012

ANIVERSÁRIOS


Nascemos no mesmo dia e, ontem, soprámos as mesmas duas velas. A minha filha soprou 14 anos; depois de trocadas as velas e novamente acesas, eu soprei 41. 
Agora, sentada ao meu lado enquanto conduzo, ela suspira: 
- Estou a ficar velha!
...
Deixei a mente vaguear e recuei ao verão dos meus 14 anos. Passeios de bicicleta, desfolhadas, risos; revivi, sobretudo, a libertação do país amordaçado que nos escondia o mundo. 
Velha!... Com tanto para viver e descobrir!

(desafio nº14 da Margarida Fonseca Santos, no blogue 77palavras)

27 de julho de 2012

VERÃO E PIQUENIQUES


ilustração de Shuai Mei


Um piquenique só é perfeito com…
a música dos pássaros
o sussurrar de um riacho
o sol a espreitar por entre as árvores, a fazer-se convidado e a aquecer a preguiça
água fresca para atrasar o calor e lavar a fruta
algo ou alguém que saiba dizer palavras doces e me embale num sono reparador…

20 de julho de 2012

SEXTA-FEIRA 13

Que mais se poderia esperar de um desafio com o número 13, redigido numa sexta-feira? Maluquice, claro!

O facto de ser francesa e a provocação do nome “Jalousie” derreteu-lhe os sentidos. E em promoção, melhor ainda!
Sentou-se numa pequena mesa redonda da esplanada e despiu-a, primeiro com o olhar guloso, depois com os lábios, língua e dentes salivados de prazer. Não demorou muito a devorá-la, tal o desejo que o seu aspeto lhe provocou.
Horas depois desmaiou. Acordou no hospital com uma impertinente salmonela.
Que mais poderia esperar de uma sexta-feira 13? Era barata…!  

desafio nº13 da Margarida Fonseca Santos (blogue 77palavras)

14 de julho de 2012

CONVERSAS QUE MAGOAM


Há conversas que magoam. Não porque sejam insultuosas ou rebaixantes. Magoam porque revelam uma realidade tão cruel que até dói. Esta, ouvida, hoje, na caixa de pagamento do hipermercado, não foi propriamente uma conversa. Começou por ser um monólogo que a menina da caixa transformou em diálogo, penso que por obrigação ou mera simpatia, pois era eu que estava a ser atendida. O monólogo começou atrás de mim. Uma senhora de aspeto humilde e envelhecido, (certamente de idade inferior à que aparenta), exclamou:
- As cenouras estão por um preço que não se pode. Subiram para o dobro. Ainda há pouco estavam a 30 ou 35 cêntimos e, agora, estão a 75.
E continuou, sozinha, a desfiar o rosário dos preços altos.
Ao fim de algum tempo, a menina da caixa comentou:
- Já estão a esse preço há uma semana. Não sei se há falta e, por isso, o preço subiu.
A senhora continuou:
- Não se admite! Subiram para o dobro. Nem levo!
Paguei e saí, sem abrir a boca, incomodada e culpada. Eu levava cenouras e não sabia o preço delas.

12 de julho de 2012

MENTIRA


ilustração de Russ Mills

Mentira. Foi tudo mentira.
Foi mentira as promessas que fizeste.
Foi mentira o projeto que criaste.
Foi mentira as palavras açucaradas, os olhares faiscantes. Foi mentira os beijos roubados, os passeios inventados. Foi mentira o sorriso que me roubou o coração.
Ah! Mas o pior não é isso. Dei tanto de mim e agora sinto-me usado, gasto como um trapo velho sem valor nem serventia.
Em fumo se desfez a minha ilusão! Quão amarga é a mentira!

Desafio nº12 da Margarida Fonseca Santos, blogue 77palavras
(usar a mesma palavra pelo menos seis vezes)

5 de julho de 2012

ENTREVISTA

Os meus alunos são umas pestinhas mas até que me fizeram uma entrevista interessante!


Ana Paula Oliveira é professora de Português na Escola Básica de Arrifana onde é, também, bibliotecária. Publicou dois livros intitulados Do cinzento ao azul celeste, em abril de 2009, e O santo guloso, em janeiro de 2012. 
- Quando decidiu iniciar uma carreira como escritora? 
- Não foi uma decisão, foi um acaso, e nunca pensei que as histórias escritas passassem a livros. Alguns dos meus contos chegaram à editora Calendário de Letras através de uma amiga e a editora decidiu apostar num, de que gostou, e o primeiro livro foi publicado. 
- Alguma vez se questionou como seria a sua vida se não se tornasse escritora? 
- Não, nunca me questionei porque sou escritora apenas nas horas vagas e quando a inspiração chega; escrevo umas histórias mas sou essencialmente professora, essa é a minha profissão. 
- O seu maior sonho de criança era ser escritora? 
- Não, nunca foi um sonho, mas sempre gostei de escrever e fazia composições interessantes pedidas pelas professoras de português. Lembro-me que, quando andava no sexto ano, me levantei uma noite para escrever um texto, cuja ideia me surgiu naquele momento, e a professora não acreditava que tinha sido eu a escrevê-lo, o que me deixou muito frustrada. 
- Como se inspira para a escrita? 
- Olhando ao meu redor, observando o que se passa, lendo muito, uma vez que as minhas leituras também são fonte de inspiração, fazendo pesquisa. O meu primeiro livro, por exemplo, resultou de uma pergunta feita por um aluno: “Por que motivo temos de andar tanto tempo na escola?” Esta pergunta originou uma resposta que posteriormente foi transformada numa história sobre a escola e a vida antes e depois do 25 de abril de 1974. 
- O que procura despertar com os seus livros? 
 - Pretendo motivar para a leitura, inspirar os alunos e divertir-me. Aliás, comecei a escrever mais seriamente sempre que pedia aos alunos para escreverem um texto. Para lhes provar que não pedia nada do outro mundo, era eu a primeira a escrever, para dar o exemplo. Assim, os meus alunos passaram a ser as minhas “cobaias” e os primeiros ouvintes das minhas histórias. 
- É difícil escrever um livro? 
- É. Dá trabalho, exige esforço e concentração, imaginação e, sobretudo, tempo muitas vezes roubado à família. 
- Escreve ficção ou inspira-se em factos reais? 
- As duas histórias publicadas baseiam-se em factos reais mas tenho histórias escritas completamente inventadas. 
- Imaginaria a sua vida sem livros? 
- Nunca!!! Os livros fazem parte da minha vida desde sempre. Sempre tive livros em casa, desde a infância, sempre procurei livros nas bibliotecas, compro livros, trabalho com livros, tento criar leitores e provar que quem lê é muito mais feliz e consegue viver várias vidas: a própria e a de todas as personagens. 
- Pensa criar outro livro? 
- Tenho outras histórias escritas mas não sei se vão passar a livros. Isso vai depender da editora que, por sua vez, irá decidir a publicação de outro livro de acordo com a reação dos leitores. Se os dois livros publicados tiverem boa aceitação e venderem bem, poderá ser que se publique mais algum ou alguns.
 - Quando era criança e adolescente, que livros gostava de ler? 
- Naquela altura não havia a quantidade de livros nem de autores, sobretudo portugueses, que há hoje. Lia tudo da Enid Blyton e coleções como, por exemplo, Biblioteca das Raparigas e Biblioteca da Juventude. Mais tarde, já quase a terminar a adolescência li vários autores russos e franceses. 

 Muito obrigada pela sua disponibilidade, esperamos que tenha muito sucesso.

Turma 8ºCEFB
ano letivo 2011/2012



4 de julho de 2012

ARREPENDIMENTO

Desta vez, o texto é uma parceria com a minha mãe.

ilustração de Adão Cruz

- Bateste à minha porta, poesia! Voltei-te as costas, não te recebi. Não quis pensar em nada, apartou-se de mim qualquer magia.
- Quis inundar-te, não me recebeste! Disseste-me não!
- Minhas mãos, de trabalho, estão cansadas.
- Podias descansar em mim!
- Minhas ideias, de oprimidas, ficaram pardas.
- Quis iluminar-te o pensamento!
- Cheio de dor está o meu pobre coração.
- Quis serená-lo, não me atendeste!
- Agora, arrependida, sinto dor. Não atendi o teu apelo, fui cruel.
Partiram, então, em direções opostas.

desafio nº11 da Margarida Fonseca Santos, no blogue 77palavras

3 de julho de 2012

EM DIREÇÕES OPOSTAS

 ilustração de Anna Walker

– Longe vão os tempos em que não nos separávamos! Transformávamos o dia numa festa permanente apenas refreada pelo remanso da noite.´
–Tínhamos a guitarra como nossa testemunha…
– Escrevíamos poemas rimados, compúnhamos baladas…
– Cantávamos em uníssono, vozes afinadas pelo diapasão do coração.
– Lembras-te? Criámos a nossa canção, a palavra-passe para entrada num mundo onde tudo parecia perfeito e imutável e, (eu convencido!), caminhávamos para um futuro mais-que-perfeito…
– Que não chegou a ser futuro!
Partiram, então, em direções opostas.

desafio nº11 da Margarida Fonseca Santos, no blogue 77palavras

25 de junho de 2012

FRANCISCO


ilustração de Cyril Rolando

Não sei o que vai na cabeça do Francisco. Mas sei o que vai no seu olhar. De um azul cristalino e transparente, os seus olhos despejam o mar quando chora, espelham o sol quando ri, iluminam a noite quando pensa. Piscam de curiosidade, tremem enquanto busca o desconhecido, brilham quando encontra o saber. Mas são as mãos que tateiam e o guiam pelas páginas da vida. Observo-o! Sei o que não vai na cabeça do Francisco!

(microconto publicado no blogue 77palavras - desafio nº10)

23 de junho de 2012

SORRISOS


Sorrisos, tímidos ou rasgados, furtivos ou atrevidos, são como os abraços e os apertados laços.

(participação no novo passatempo da Artidar)

17 de junho de 2012

O GALGO E A TARTARUGA

Fábula revisitada, sem a letra e


Não foi por acaso, não! Ganhando a corrida ao galgo, a tartaruga ganhou a aposta.
Mas, do início, vamos a história contar.
Numa morna manhã, a tartaruga, vagarosa, divagava. Um galgo distâncias galgava.
Irónico, zombou:
 – Mandriona! Com tal ritmo, tanto vagar, quantas vitórias irás alcançar?!
 – Vai bugiar. Vai uma aposta?
O galgo riu. Aprovou a proposta. Confiado, à sombra dormiu, sonhou...
A tartaruga, ultrapassando-o, a fita ambicionada cortou.
Vitoriosa, muito orgulhosa, bradou:
 – Fanfarrão! Tiras daqui a lição?

desafio nº9 da Margarida Fonseca Santos publicado no blogue 77palavras

7 de junho de 2012

DESCANSO

Desafio nº8 da Margarida Fonseca Santos (blogue 77palavras): no texto apenas podem aparecer palavras com as letras A E O T R S P L M N D C



A tarde decorre lentamente. O sol espera-me. Pretendo estender-me, descansar. Toco no acelerador, o carro estremece. Paro no local deserto, (apesar de tão perto!), onde encontro calma, onde todos os contratempos, até os (aparentemente) sem desenlace, se apartam como por encantamento. O tempo está sereno e, desasado, não se apressa. Solto o pensamento. Nado compassadamente, no espaço, sem cansaço, e depressa alcanço o éden.
Calor. Ondas. Mar.
E, para completar o concerto, o soneto no areal traçado.


6 de junho de 2012

OS "HERÓIS" DE PORTUGAL

Quino

Até que enfim! Encontrei alguém que me compreende! Não, não é a Mafalda. É um  homem! Escreveu João Tordo, na sua crónica da revista do Expresso, no passado dia dois de junho:
“A chegada de mais um campeonato europeu (…) é um regalo para o governo: milhões de portugueses andarão, durante um mês inteiro, distraídos dos assuntos fundamentais (…) e concentrados na nossa droga de excelência…”
Ora, a nossa (deles, restantes portugueses, porque minha não é!!!) droga é o futebol, que, para mim, é mais uma praga do que um desporto. Não é o futebol em si que me irrita. É tudo o que está à sua volta.
O que me irrita é a cegueira que ele provoca, os milhões de euros que envolve, a corrupção a que está ligado.
O que me irrita, são os jogadores (e particularmente os da seleção!) sem instrução, sem educação, vaidosos, que se sentem superiores a tudo e a todos só porque calçam chuteiras, ganham e gastam quantias obscenas.
O que me irrita, são os adeptos (a começar pelos dois cá de casa) que perdem o tino, a razão e, muitos, o dinheiro que não têm e vibram com os jogos como se disso dependesse as suas vidas ou a solução de todos os problemas do país.
O que me irrita é o facto de esses jogadores serem considerados heróis pela comunicação social que exacerba e alimenta uma importância e um valor que não têm.
Que nervos!

4 de junho de 2012

PARTISTE...



Partiste antes do tempo, há sete anos.
Vieram sete demónios, atacaram-te impiedosamente, não te pudeste defender.
Roeram-te as entranhas, fizeram-te sofrer sete meses…
Não tinhas sete vidas para viver. Partiste!
Sete anjos olharam por ti enquanto te debatias. Mas, de longe, veio outro, de grandes asas brancas, e arrancou-te das garras que te sufocavam. Deu-te a paz.
Sete de abril. Ficamos nós, as sete, a chorar a tua partida, a aplaudir a tua vitória.
Já não sofrias!

desafio nº7 lançado no blogue 77palavras, de Margarida Fonseca Santos

27 de maio de 2012

PAIXÃO


De dia, viam-se pouco mas isso não importava. Ela esperava ansiosamente que a noite chegasse e o encontro era mais intenso. Os seus afazeres profissionais não lhe permitiam que se cruzassem mas, assim que entrava em casa, depois de um dia de trabalho cumprido (e comprido!), logo ela se lhe dirigia, numa enorme vontade de lhe tocar, de o afagar, de o possuir até se cansar. E pensar que, há bem pouco tempo, detestava computadores! Quem diria...!

Mais um desafio para o blogue 77palavras

20 de maio de 2012

AMANHÃ...

Microconto lido na Rádio Sim; OUVIR AQUI
´
ilustração de Shiori Matsumoto


Amanhã não haverá mais lágrimas nem acusações.
Amanhã só haverá ausências pois contigo partirão afetos e ternuras.
Não haverá músicas nem danças, não haverá beijos nem festanças.
Haverá silêncios e tudo o que foi bom não voltará.
Mais não! Chega! Não pretendo pedir o impossível. Quero secar
lágrimas. De tanto lembrar, quero esquecer o que foi vivido!
Nem me vou preocupar em apanhar os cacos. Quero apagar
acusações para não lamentar nem odiar. Apenas continuar e… perdoar.
 desafio nº5 da Margarida Fonseca Santos, no blogue 77palavras

15 de maio de 2012

CONTADOR DE ESTÓRIAS

ilustração de Tilly Strauss


Sou um bule rachado, sou! Mas não diminuído nem inútil. Como já não tenho o prazer de receber a água fervente, que a minha finíssima porcelana deixa verter, tornei-me um contador de estórias.

Sempre que novas folhas de chá mergulhavam em mim e se abriam em flor, lá vinha uma estória. Tantas ouvi. Da China, Ceilão, Índia, Japão. Ri, chorei, arrepiei-me, comovi-me. Todas cá ficaram. Agora, encanto com elas os visitantes deste museu, o meu novo lar.


microconto publicado no blogue 77palavras

5 de maio de 2012

NAMORO


ilustração de Kiko Rodriguez

Salto de página em página e todas percorro, sem pressa nem nervosismos. Lentamente. Saboreio o percurso, paro, avanço, recuo.
Deito-me com as palavras, observo-as, acaricio-as e saboreio cada uma delas.
Chego ao fim, à última página, aquela que menos tempo me vai deixar ficar para dela usufruir. Dói-me não poder continuar entre elas mas sei que tenho outras que me esperam ansiosamente.
Não sou um marcador fiel: namoro, com volúpia, todas as páginas dos livros que marco.




1 de maio de 2012

MISÉRIA A PASSOS LARGOS


A cidade onde vivo é considerada uma das cidades do país onde há melhor qualidade de vida. Sempre o senti. Vivo aqui há vinte e seis anos e sempre me senti bem. Eu e todos que cá vivem. Tudo é pacífico, o trânsito não provoca engarrafamentos de perder a paciência, não falta nada. Não faltava.
Nunca pensei, até hoje, que iria testemunhar uma situação tão oposta. Mesmo frente ao meu prédio, mesmo no contentor onde despejo diariamente o meu lixo doméstico. Hoje, não me atrevi a deixar ali o saco. Faltou-me a coragem!
Não consegui despejar o meu lixo que um ser humano iria escabulhar para recuperar algo que a minha abundância se atrevera a desperdiçar da mesma forma que já escabulhava os despojos e desperdícios de outros. Operação demorada, a dele!
Isto passou-se hoje, ao início da noite. Num dia em que se festejou (festejou?) o Dia do Trabalhador. Este homem gostaria, provavelmente, de ser um trabalhador e de ter trabalhado neste 1º de maio.
Isto passou-se hoje, no final de um dia em que a população portuguesa se atropelou, se esgadanhou, se digladiou numa cadeia de hipermercados para comprar indiscriminadamente, sem critério ou necessidade, e gastou mais de 100€ para poupar 50%. E gastou tempo e paciência e tolerância e, certamente, comprou produtos que nunca vai gastar. Um dia mais tarde, é quase certo, estes produtos irão parar ao contentor onde este homem irá de novo vasculhar para encontrar algo que encha a sua panela.
Este homem viveu o feriado do trabalhador mas não o festejou.
Este homem não teve 100€ para ir a correr gastá-lo no hipermercado da louca promoção.
Este homem não teve comida no prato.
Este homem festeja a vida com os restos que encontra no contentor do lixo.
Está a ficar assim a cidade onde vivo? Se é uma das cidades com melhor qualidade de vida do país, como anda o país?
Tenho vergonha! Se os olhos não veem, o coração não sente. Os meus olhos viram. Doeu. Dói.

29 de abril de 2012

NOITES A FIO


ilustração de Kim Sutherland Whitton
O desafio da Margarida Fonseca Santos: um conto com 77 palavras que inclua a frase "Sempre quis ser uma história" mas ao contrário, lida do fim para o princípio, com as palvras distribuídas pelo texto.

-Lê a história, só mais uma vez, pode ser? – suplica Bia.
-Quis ter uma filha leitora mas, assim, é de mais! – resmunga a mãe, tonta de sono, pálpebras a fecharem o dia de trabalho, sempre que a filha lhe pede o mesmo.
-Chega por hoje! Dorme e sonha com os anjos.
A mãe sai, Bia volta a pegar no livro. Ainda não sabe ler. Mas é o livro que ela quer que lhe leiam, noites a fio.


microconto publicado no blogue 77palavras

LEITURAS

Ilustração de Jessie Willcox-Smith

Furando as nuvens cinzentas, um raio de sol atravessa a janela, espreita timidamente e ilumina o meu livro. As palavras sorriem e os meus olhos agradecem esta bênção!

28 de abril de 2012

LIVROS E MARCADORES

"Não sou um marcador fiel: namoro, com volúpia, as páginas de todos os livros que marco."

Frase com a qual participei num desafio lançado no Facebook, pela Ana Almeida, e que saíu vencedora. O prémio: este conjunto de marcadores, criados pela ARTeDAR, que vai enriquecer a minha coleção.