31 de maio de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO LVI

Nova fase de desconfinamento, mais abertura.
Finalmente pude usufruir de um prazer tão simples como tomar um café numa esplanada. Quase vazia, é um facto, com as mesas afastadíssimas umas das outras, mas valeu a sensação de liberdade, um café, ao ar livre, dois meses e meio depois do último!
São pequenos prazeres como este que o bicho coronavírus nos roubou. Outro prazer roubado: o de entrar numa biblioteca para requisitar um livro ou numa livraria para o comprar. São espaços que nos transmitem tantas sensações! Ver os livros alinhados e percorrer as estantes até encontrar o que se pretende. Sentir o seu cheiro. Tactear as suas folhas e sentir a textura do papel. E, por incrível que pareça, as sensações auditivas que estes espaços proporcionam, mesmo que se encontrem vazios, são incríveis. Dentro dos livros há vidas e eles gritam para chamar a nossa atenção. Querem ser levados.
Este prazer ainda não foi recuperado. O livro, encomendado na Internet, chegou a casa. Mas não é a mesma coisa!
Por outro lado, se muitos prazeres foram roubados, outros vieram substitui-los. Observar a Natureza que, repentinamente, passou a revelar-se despudoradamente, faz-nos (re)descobrir o quanto ela é bela em toda a sua simplicidade. Não me lembro de, nos anos transatos, ter visto as amoreiras floridas de forma tão provocadora!

24 de maio de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO LV

Toda esta situação, vivida há mais de dois meses, está a “ser um grande bico de obra” e a deixar-nos “feitos num oito”.  Já começa a chegar-nos "a pimenta ao nariz".
“Enquanto o diabo esfrega um olho”, tudo “foi por água abaixo”, tantos projetos ficaram em "águas de bacalhau" e foi preciso dar “corda às sapatilhas” para nos reinventarmos. Confinados em casa, fizemos experiências culinárias. Há quem se queixe que está a “comer que nem um abade” e a cozinhar comidas que fazem “crescer a água na boca” só de ver as fotos. Mas, o pior é para aqueles que ficaram “de mãos a abanar”, sem emprego, sem dinheiro e sem ter o que comer. Felizmente, há gente solidária que, “de braços abertos”, “arregaça as mangas” e põe “pernas ao caminho” para ajudar.
Muita gente, eu incluída no grupo, já está “pelos cabelos” e com “a cabeça em água”. Os professores têm trabalho acrescido, com as aulas à distância e, às vezes, parece que estão “a falar para o boneco” ou a “falar com os seus botões”. As paciências “estão por um fio”! Mas, temos de pensar naqueles que têm passado as verdadeiras “passas do Algarve”, os doentes e todos os que trabalham nos hospitais. Estes, sim, têm-se mostrado “à altura” e “comido o pão que o diabo amassou”.
E estaremos todos “no mesmo barco”? Não me parece! Não estamos todos “no mesmo pé de igualdade” e é preciso pôr "os pontos nos iis”! Se uns encontraram o “negócio da China”, se uns “não têm mãos a medir” de tanto trabalho, outros estão mesmo em “maus lençóis”, “com a corda na garganta”, a “apertar o cinto” de tal maneira que até dói. “Não pregam olho” e passam noites “em claro”. E muitos vão ficar “apanhados do clima”. Empresas e comércio “às moscas” vão trazer consequências. Se há gente que é “pau para toda a colher” e aguenta firmemente, outros há que “não podem com uma gata pelo rabo” e rapidamente se “vão abaixo das canetas”.
“Arejar as ideias” ao sol parece que ajuda. Agora que o desconfinamento foi permitido e o povo saiu à rua, como se “não houvesse amanhã”, esperemos que não “fique o caldo entornado” e que esta libertação não seja “sol de pouca dura”. É um facto que todos estamos a necessitar de “desenferrujar a língua” com os amigos, porém, é preciso “andar na linha” para que o vírus não volte a “pintar a manta”.
Neste momento, o verão aproxima-se a passos largos e seria altura de fazer planos para férias. No entanto, não adianta “fazer castelos no ar”! O vírus parece que veio para ficar, está a dar-nos “água pela barba”, “leva-nos aos arames” e “deixa-nos às aranhas”. Se queremos “mudar de ares”, pensemos em “ir para fora cá dentro”, de preferência que o cá dentro seja o nosso jardim ou terraço! “Cautela e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém” para que “não nos saia cara a brincadeira”!
Somos um povo “de armas”, assim “reza a História”. Mas, santa paciência! Não “temos sangue de barata”! “Cortarem-nos as asas”, isso não! “Deixarem-nos atados de pés e mãos”, nem pensar! E, ainda por cima, com “uma mão à frente e outra atrás” deixa qualquer um “com os azeites”!
Seria “ouro sobre azul” se o danado vírus, “num abrir e fechar de olhos”, se “despedisse à francesa”, e partisse tão depressa como chegou.
“Estamos a braços” com uma situação complicada, é certo, mas não vamos “baixar os braços”, mesmo “estando em brasa”. Temos de “fazer das tripas coração” e dedicarmo-nos “de alma e coração” a um projeto que nos mantenha a saúde mental.
“Para a frente é o caminho”. E tudo isto há de “passar à História”! Não sei é quando, pois, encontrar a cura, é “como encontrar uma agulha num palheiro”. Também não sei se tudo será “fechado com chave de ouro”! Pelo que se ouve na comunicação social, o melhor será "tirarmos o cavalinho da chuva" e "esperarmos sentados" até que a coisa passe!

22 de maio de 2020

DIA DO AUTOR PORTUGUÊS

Hoje, é o Dia do Autor Português. Foi com o propósito de o homenagear e de destacar a sua importância no desenvolvimento da cultura e do bem-estar da comunidade que se criou esta data em 1982. 
Este dia assinala igualmente o aniversário da Sociedade Portuguesa de Autores.
Na qualidade de autora de alguns livros publicados, aqui fica a gravação da leitura de um dos meus (muitos) microcontos em 77 palavras, do livro Em poucas palavras.


18 de maio de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO LIV

Pois agora que estamos na segunda fase do desconfinamento, ou lá o que isso seja, é muito bom, assim se finta o bicho que se julga mais esperto que a gente, e a gente gosta tanto do mar e da praia, até somos um país de marinheiros que muito se esforçaram para que o mar fosse nosso, e foi um regalo, ontem, que o sol até veio fazer a festa e brilhou muito e aqueceu o tempo e nem deixou que o vento viesse incomodar e, como estava a dizer, foi um regalo mergulhar o pezinho na areia e molhá-lo no mar, e a gente também gosta muito de esplanadas e de se sentar numa para saborear o belo do pastel de nata com a bela da meia de leite ou a rica cervejola com uns amendoins e uns tremoços, há lá coisa melhor, como pode o bicho impedir a gente de ter tudo isto, que se lixe o bicho, parece tolo, vá lá para a terra dele, que a gente aqui não o quer, onde se viu isso, roubar-nos os prazeres, impedir-nos de estarmos na rua todos juntos a falar mal dos vizinhos e a fazer queixa do governo que agora até nem dá para falar mal dele, o governo anda bonzinho, até nem vai entrar em austeridade e até vai apoiar os laiofes, ou lá o que isso é, e até aumentou os salários com uma percentagem quase tão pequena como o bicho que ninguém a viu, e como a gente deve evitar aglomerações, até deu jeito fazer uns piqueniques, afinal a gente tem tantas matas como mar, e é tudo ao ar livre, não há mal nenhum nisso, não há nada como umas geleiras cheias de cerveja e coca-cola e rissóis e bolos de bacalhau e o tacho do arroz embrulhado num cobertor, no jornal agora não, porque agora não dá jeito sair de casa para ir comprar o jornal, por causa do Covid!
...
Ora então levai lá o recado que não é da Guidinha* que já cá não anda há muito tempo, mas é de uma prima afastada.

* referência às Redações da Guidinha, de Luís de Sttau Monteiro

15 de maio de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO LIII

É tão bom quando nos convidam a participar em eventos de leitura!
Este ano, as 24 horas das bibliotecas escolares, organizadas anualmente pelo CFAE AVCOA, não se puderam realizar presencialmente. No entanto, o ser humano é resistente e persistente e não se deixa desmoralizar. E as leituras aconteceram. Em casa de cada pessoa convidada. Ei-las.

 

São momentos assim que não nos deixam ir abaixo quando o que apetece é gritar bem alto e insultar o bicho!

UM DESAFIO, UM PRÉMIO

Tendo participado num dos passatempos da The Book Company (o livro de Afonso Cruz, Jalan, jalan, foi a inspiração - ver aqui), acabei por ganhar um livro que chegou hoje. Mais um para o muro de livros a ler, construído no parapeito da janela, junto à minha secretária de trabalho.

13 de maio de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO LII

Há dois meses em casa em teletrabalho. Pensei que teria todo o tempo do mundo para ler, pelo que construí um muro com livros para serem lidos durante o confinamento. Ao fim deste tempo todo, o muro já deveria estar destruído. Ingenuidade!
Se, por um lado, o trabalho online é mais exigente e requer muito mais tempo (até porque é uma altura para muita aprendizagem), por outro, tanto tempo com as tecnologias acaba por dispersar a atenção e a concentração está a fugir a sete pés!
No entanto, acabei de ler um que, há muito, esperava a sua leitura: A minha verdadeira história, do escritor espanhol Juan José Millás.
"Escrevo porque o meu pai lia. Vejam-me na sala da casa de então, os móveis escuros, escuro eu também atrás do cadeirão. Sou o miúdo a quem a mãe diz: não grites, que o papá está a ler; não corras pelo corredor, que o papá está a ler; baixa a televisão, que o papá está a ler... O papá está a ler. O papá não faz outra coisa senão ler."
Este é o primeiro parágrafo de A minha verdadeira história, um romance que se lê de um fôlego, por ser muito pequeno e pela força da narrativa que nos impele a chegar ao fim.

Um adolescente de 12 anos quer ser escritor porque o pai é um leitor que lê ininterruptamente. Só assim, o pai dará por ele, quando o ler, porque, na vida real rejeita-o, nem sabe que ele existe. A mãe contribui para isso, pois está constantemente a mandá-lo calar e a estar quieto porque o pai está a ler.
Este adolescente que se quer suicidar, precisamente porque o pai o ignora, atira um berlinde de vidro do alto de uma ponte (onde se deslocou várias vezes para se suicidar) o qual bate num carro, onde viaja uma família de quatro pessoas, provocando a morte de três elementos desta família (o casal e o filho).
Descobrindo, na estante do pai, os livros O idiota e Crime e castigo, ambos de Fiódor Dostoiévski, logo se imagina o protagonista destes livros e, assim, desenvolve a sua verdadeira história, mas sem nunca ter lido livro algum. No seu ponto de vista, ninguém é mais idiota do que ele e vive obcecado com o "crime" que cometeu, passando a vida à espera do castigo. Tão obcecado pela culpa, que não descansa enquanto não trava conhecimento com a única pessoa que sobreviveu, uma menina da sua idade, com uma prótese numa perna e de cara desfigurada.

“E aqui está a minha verdadeira história. Graças a ela descobri que o meu pai me ama desde que me vê como um filho de ficção, precisamente ao contrário da minha mãe, que sempre sonhou com um filho real.”

10 de maio de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO LI

E não é que as roupas voltaram a pregar-me uma partida e continuam a criticar-me? Já não há paciência! E, hoje, mais alguém se juntou à conversa. Ela vai linda, vai!

- Invejosas! Foi fim de semana, o sábado foi de festa, aniversário da filha dela, já era tempo de sairmos do guarda-roupa para arejar! - exclamaram as calças de couro verde e a blusa de seda em simultâneo.
- Invejosas, nós?! - gritaram as leggings, ofendidas. - Então não temos sido nós as eleitas, as mais usadas? Inveja de quê? Mas lá que era escusado termos ficado fechadas todo o fim de semana, lá isso era!
- Gaba-te, cesta, que vais à vindima! - exclamou um dos vestidos, o mais vaidoso. - Não fosse a chuva e trovoada de sábado, vocês veriam quem teria saído do armário para a festa de aniversário. Teria sido um de nós, certamente!
- Ou eu! disse a saia castanha de seda. - Afinal, continuo aqui, tão virgem como no dia em que fui comprada!
- Pois! Hoje saímos e fomos bem testadas - ironizaram as calças de ganga, as mais justas do armário. - Ela quis pôr-nos à prova, que é como quem diz, pôr-se à prova. Já que deu folga à balança, nós é que a avaliamos. Vá lá! Coubemos bem, pelos vistos não a apertamos muito dado que passou o domingo sentada frente ao computador, sem nos despir, e não se queixou de apertos.
- Vós falais, falais, e nós aqui a ouvir. Chegou a hora da nossa reivindicação! - exclamaram tristemente os aventais. - Mesmo num fim de semana de bolos, pão e várias refeições, nós não saímos da gaveta! Cup cakes de chocolate e de baunilha, bolo de cenoura, pão de água, sopa, bolonhesa, frango assado... e nós quietos, sem uso. A culpa é da Bimby que tem trabalhado sem parar e não suja! E, como vós, ó chiques, não tendes saído do armário, nós não fazemos falta para vos proteger! Não há direito!
- Contentem-se com a nossa sorte! Nós continuamos sem uso, sem respirar, fechadinhos nas caixas. As sapatilhas continuam a combinar com tudo, mesmo com as roupinhas do fim de semana, agora tão vaidosas, mas, não tarda nada, estão arrumadas novamente - sopraram os sapatos do interior das caixas onde vivem enterrados há dois meses.

Pronto! Chega! Recuso ouvi-los mais!

9 de maio de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO L

Hoje é dia de festa sem festa. Ou melhor, com festa, mas apenas a três, em vez de ser a mais de vinte.
Hoje, a mensagem é para ti, filha. Fazes 28 anos e não vais festejar o teu aniversário como gostas,  com toda a tua alegria e vontade de conviver com muita gente.
No entanto, tens o bolo de que gostas. De laranja. Simples. Sem recheio nem cobertura.

E pudeste distribuir os cupcakes à avó, aos tios, aos primos e às melhoras amigas. De fugida, é certo. Mas, assim, cada um pode, no recanto dos seus lares, saboreá-lo juntamente com uma taça de champanhe (ou uma chávena de chá) e brindar a ti. Brindar à vida. Brindar ao futuro.
E o vídeo que fizemos para comemorar o Dia da Mãe, há seis dias, fica como testemunho da nossa cumplicidade.
Hoje e sempre, só desejo que sejas feliz.

7 de maio de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO XLIX

Com o tempo fantástico lá fora, perdidas as palavras, só me resta uma frase:
Daria tudo para me sentar numa esplanada com um livro como companhia!

                                                             Memória de tempos bons!

5 de maio de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO XLVIII

Hoje, comemora-se, pela primeira vez, o Dia Mundial da Língua Portuguesa, instituído pela UNESCO. E, para homenagear a língua, nada melhor que escrever  um microconto, escolhendo as palavras para descrever o país, e, assim, responder ao desafio da Margarida Fonseca Santos de usar 7 palavras com o ditongo "ai". 
Brincando com as palavras , não há medo que se instale!

País de praias de areia fina que convidam ao bailado das gaivotas
País das maias às janelas e dos cravos nas lapelas. 
País dos xailes tricotados e das negras capas dos estudantes. 
País da paixão pelo fado, com música no coração. 
País de língua com sabor a mel e cheiro a mar, que viaja e aproxima. 
País das cantigas de amor, das romarias e dos doces conventuais
Este és tu. Portugal, país de poetas que te cantam.

3 de maio de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO XLVII

Hoje não é tempo de medo. É dia da mãe e de toda a ternura que existe entre mães e filhos. Um cordão que não se corta nunca.
E porque não podemos dar beijos nem abraços, pelo menos há um jardim onde nos podemos encontrar. E tu podes falar das tuas flores. E das tuas árvores que também são mães e estão a dar fruto. E dos teus gatos e gatas, mães que acabaram de dar à luz. E das tuas refeições que te esqueces de fazer de tão ocupada andas. E das tuas pinturas. E dos teus poemas. 
E o teu jardim é, também, um poema. 











2 de maio de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO XLVI

Fim de semana prolongado graças ao feriado 1 de maio que se viveu ontem. 
Vamos passar de estado de emergência para estado de calamidade e o desconfinamento vai começar a ser feito gradualmente. MEDO!

Finalmente um tempinho extra para escapar do computador e fazer frente aos armários. Parece que a primavera, que tinha chegado e virado costas, vai voltar de vez. Então, chegou a hora de rever os armários da roupa e do calçado. 
Devo estar a ficar maluca, depois de tanto tempo em casa e de tanta tecnologia. Não é que a roupa e o calçado começaram num diálogo acusatório que me deixou incomodada?
- Não percebo por que carga de água vem ela agora incomodar-nos com arrumações se, até aqui, não nos tocou! - reclamaram os vestidos.
- Sim! Temos estado aqui enfiadas, sem uso, sem qualquer préstimo, a ganhar pó e a correr o risco de passarmos de moda e ela não nos usa - queixaram-se as túnicas sacudindo as rendas.
- E nós? Enchemos três cruzetas e, apesar de sermos tão práticas, raramente daqui saímos. Ela diz que  passa muito tempo sentada e que nós lhe apertamos os movimentos - barafustaram as calças.
- Sorte a nossa! - regozijaram-se as leggings. - Nós, que raramente saíamos do armário, agora andamos num rodopio. Ela não gosta de nos usar, diz que fica um pipo, mas, agora, não tem outro remédio. Só nós a fazemos sentir-se confortável e, assim, logo de manhã, mal se levanta, fica pronta para a hora do pilates ou do yoga.
- Nós só saímos da gaveta duas vezes por semana, quando ela vai dar aula por videoconferência - constataram as camisolas.
 - É da maneira que nós saímos mais vezes - regozijaram-se as tshirts.
- Vede o que eu senti quando ela me vestiu, para ir dar aula, e,  logo de seguida, combina-me com umas leggings manhosas! - disse irritada uma túnica de seda com peito de renda.
- E, se não sois vós a sair do armário, somos nós. Conforto maior não há! - desta vez foram os pijamas a falar, inchados de orgulho.
- E nós, aqui arrumados a ganhar bolor? - gritaram, desanimados, os sapatos e as botas, do alto dos seus saltos altos. - Quando ela voltar a usar-nos vai dar cada tralho! Estamos convencidos que ela já não se aguenta em cima dos nosso saltos.
- Fazemos nossas as palavras das leggings: sorte a nossa, que raramente saíamos do armário e agora fazemos moda - disseram as sapatilhas, cheias de orgulho.
- Mas, lembrem-se disso, os mais confortáveis e mais usados ainda somos nós, agora e antes desta pandemia - disseram os chinelos. - Já éramos nós que lhe descansávamos os pés dos vossos saltos castradores, assim que entrava em casa. Só nos lamentamos de estarmos a ficar velhos, de tão usados e de tão lavados. Estamos convencidos que, brevemente, seremos substituídos!
- Eu nem digo nada! - queixou-se uma saia-calça de seda, totalmente virgem. - Fui comprada um pouco antes do confinamento e fiquei aqui confinada neste armário, sem vos conhecer, sem uso, sem saber o que é sentir o vento, a chuva ou o sol. Fui comprada e nunca usada. No entanto, tenho esperança que amanhã, como é o Dia da Mãe, possa ser usada e perder a minha virgindade! Mas, se ela me usa e me combina com os chinelos, estará o caldo entornado!!!
....
Não! Estou a sonhar, só pode. Não estarei assim tão maluca. Vou sair, dar uma volta ao quarteirão e respirar ar puro! Uma semana inteira de chuva e frio metida em casa não pode dar bom resultado!!!!


1 de maio de 2020

LEITORES, LEITURAS E BIBLIOTECAS

Enquanto leitora, desde que aprendi a ler, e professora, há muitos anos, não suporto a expressão, tantas vezes usada (inclusivamente nas escolas), “leitura obrigatória”. O adjetivo “obrigatória”, por si só, já afasta qualquer vontade de ler. 

Não poderia estar mais de acordo com o filósofo e escritor espanhol Fernando Savater quando,  numa entrevista conduzida pela jornalista Ana Sousa Dias, diz que os prazeres se contagiam, não se impõem, e que os jovens devem ser introduzidos na leitura de uma forma lúdica e não forçada para que, começando com obras mais acessíveis, aos poucos, passem para obras mais complexas.

Então, mais do que obrigar a ler (até porque o verbo ler, como disse Daniel Pennac, não suporta o imperativo), importa sugerir, mostrando os livros (capas, sinopses, booktrailers…), promover fóruns de leitura em sala de aula, falar dos livros e comprovar que têm magia, que vão dar prazer e divertir, que vão fazer sentir, que vão permitir viajar e viver de forma diferente. E vão dar a conhecer tantas vidas que vivem dentro deles. 

E muitas são as atividades possíveis para que estes objetivos, definidos pelo mediador de leitura, sejam alcançados. 

Um mediador de leitura que queira contagiar deve, voltando a citar Savater, “inteirar-se não dos livros que ele quer que o miúdo leia, mas, sim, dos livros que o miúdo quer ler”, facilitando o diálogo entre os livros e o leitor.

Não há mediador de leitura que leve os outros a ler se não conhecer profundamente os livros para os adequar ao gosto pessoal de cada futuro leitor, que não fale com paixão sobre eles, que não use técnicas de persuasão. Falar de um livro com imenso entusiasmo é o caminho certo para que o recetor ganhe vontade de o ler.

Enquanto professora de português, começo o ano letivo levando um saco de livros para a sala de aula, para os alunos começarem a fazer as suas escolhas. No blogue que mantenho para as minhas turmas são, também, sugeridas leituras de acordo com os seus interesses, a sua faixa etária, ou relacionados com conteúdos programáticos.  

Após fóruns de leitura, em sala de aula, já vi alunos saírem da sala a correr (literalmente) para irem à biblioteca buscar o livro que acabou de ser apresentado. 

Já vi uma aluna chorar porque era a única na turma que não estava a ler um livro, por isso não tinha nada para partilhar, ao contrário dos colegas que falavam com entusiasmo do livro que estavam a ler. 

Já ouvi uma aluna dizer, cheia de emoção, que quando tivesse um filho lhe daria o nome da personagem do livro que tinha acabado de ler, de tal maneira a marcou. Chamar-se-ia Shmuel, como o miúdo judeu do livro O rapaz do pijama às riscas.

As visitas à biblioteca escolar, pelas turmas, são fundamentais para que os alunos possam escolher os títulos, a partir da apresentação de um conjunto de livros de temas e géneros variados, que contribuam para lhes despertar a curiosidade pela leitura, assim como alargar o seu conhecimento de títulos que, provavelmente desconhecem. E os momentos de leituras para as crianças são únicos. É um prazer enorme ouvir os alunos - “Gostei tanto deste livro!" - e vê-los, de seguida, a quererem requisitar o livro que acabou de ser lido.

Tudo isto não acontece por acaso. É preciso envolver os alunos, antes, durante e depois da leitura, com atividades e técnicas variadas e sedutoras que captem a sua atenção e interesse. É preciso mostrar, assim como quem não quer nada, que entrar numa biblioteca é entrar num lugar mágico, é entrar num lugar onde se concede a todos os cidadãos a oportunidade e o prazer de serem andarilhos pelo mundo.

Para concluir, mais uma vez concordo com o grande pensador Fernando Savater: “ler também é diversão”. Pena que muitas pessoas não o tenham descoberto. Mas estão sempre a tempo!

texto publicado na revista online "A casa do João"