31 de março de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO XIX

Agora que a avaliação dos alunos terminou e o Teams funcionou na perfeição, depois de uns minutos de stress (a tecnologia não corresponde quando mais dela necessitamos!), é momento de paragem para contemplação.
Agora, o mundo, o meu pequenino mundo, é observado através das janelas e do alto do terraço.
Olho pelas janelas e continuo a ver vizinhos do prédio de trás que desconhecia até ao momento. Uns que vêm pedalar para a varanda, outros que vêm para a relva jogar à bola, outros que sacodem o pano do pó, outros que vêm, apenas, ver o tempo passar. Os vizinhos do meu prédio, esses não os vejo. Não saio, não me cruzo com eles. Apenas os ouço.
Do lado da frente do prédio, do meu terraço, vejo passar o comboio. Vazio. E isso leva-me a momentos de meditação. 
O que pensa o maquinista enquanto o conduz? 
O que pensa o guarda da passagem de nível ali sozinho o dia todo?
O que pensam as pessoas que ainda vão passando na rua?
E olhar a paisagem com outros olhos, um olhar mais lento porque mais lento é o tempo, também contribui para que mais pensamentos me ocupem a cabeça.
Os passarinhos voam e atravessam os campos em liberdade. Trinam logo de manhã cedo, numa orquestra afinada, indiferentes a tudo. As pombas continuam a fazer ninho e a viver no alto do prédio (conquistaram o condomínio que é delas por teimosia), a atravessar o terraço em direção ao telhado e a arrulhar indiferentes às pessoas, aos vírus, à chuva ou ao sol. Os cães dos vizinhos estão calmos, não se ouvem.
E toda esta calma é apenas aparência. Esta sensação de férias é pura aparência.

RISCO

Quando o bicho nasceu, achou-se o mais poderoso do mundo. Mais poderoso que os poderosos. 
De imediato, partiu mundo afora, num JOGO em que as peças são a VIDA e a morte e que, para ele, se tornou um VÍCIO que não quer largar. 
E não poupa nenhum país por onde passa a uma VELOCIDADE estonteante. Revestido de ADRENALINA, põe todos em PERIGO. Destrói a economia. Destrói afetos. Não permite abraços. 
O mundo atual vive no RISCO. 

 Desafio nº 203 – risco + 6 palavras

29 de março de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO XVII

Ver o mar e sentir a maresia. Algo que começa a fazer falta. A sua força renova energias e dá alento. Enquanto está longe e não posso ir até ele, agarro-me às imagens e às palavras.

28 de março de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO XVI

"O vírus atingiu-nos a todos por igual." Frase do Primeiro Ministro português e, quando diz todos, não se refere apenas a Portugal. É o mundo inteiro a confrontar-se com o mesmo problema. Todo o mundo na mesma guerra contra um inimigo tão minúsculo. E, Em Portugal, entramos numa fase difícil, a fase de mitigação.
Por esse mundo fora, os dados de hoje não são animadores.
Espanha: 9500 profissionais de saúde infetados: "Trata-se de uma situação que nos apanhou a todos de surpresa. Ninguém imaginava que isto poderia ser tão rápido e tão grave como está a ser pelo que se terá de optar por endurecer as medidas. Da minha casa vejo ainda muita gente a circular na rua e isso preocupa-me." - comentário de um médico espanhol.
Itália: 919 mortos em 24 horas, maior número de mortes num dia desde o início da crise. "Obviamente os turnos são extremamente massacrantes" - comentário de um médico italiano.
Inglaterra: Primeiro Ministro britânico infetado. Príncipe Carlos infetado. Conselheiro da saúde infetado. 181 mortos em 24 horas.
Enquanto isto, nos EUA, o presidente Trump diz que "é preciso voltar ao trabalho". E o Ministro das Finanças holandês questiona "por que motivo alguns países não têm verbas suficientes para lidar com os impactos económicos da crise motivada pelo coronavírus".
Assim vai o mundo. Em luta contra o Covid-19 e em luta para que a economia não o afunde!
E está mais que visto que o vírus não escolhe idades, nem classes sociais, nem classes profissionais. Não quer saber de etnias nem de religiões. Não quer saber de economia nem de finanças. Não quer saber se é inverno ou primavera. Vai tudo a torto e a direito, desde que as pessoas se ponham a jeito.
O problema é que há muitos que se põem a jeito e não ficam em casa. E o sol que teima em convidar para passeios em grupos. Passear sozinho não tem piada nenhuma!! 
E se todos fugissem do cabrão?

(imagem que circulou no Facebook, sem autoria atribuída)

27 de março de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO XV

O estado de emergência foi decretado há mais de uma semana. "O país não vai parar" disse, na altura o Primeiro Ministro. Parou, para muitos. Continua a girar, para outros que levam a vida como se nada se estivesse a passar. E todos os dias há mais infetados. E mais mortos. Porque há quem continue a pensar que só acontece aos outros. E a agir como tal!...
Hoje, é Dia Mundial do Teatro. Haveria espetáculo na Casa da Criatividade. Haveria convívio literário num "Chá de Poesia", na escola. Não há. Urge travar o inimigo.

25 de março de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO XIII

Hoje, voltei a sair para fazer compras. Cada vez apetece menos sair, por muito que o sol convide! Parece que o vírus espreita em qualquer esquina, em qualquer pessoa, em qualquer pedra da calçada e o desinfetante anda num corrupio. Por todos os motivos e mais alguns, é preferível ficar em casa e ver a primavera a espraiar-se lá fora, tonta de cheiros e de cores.

Primavera, natureza a brincar 
Folha a folha a despertar 
A cor invade a paisagem 
E a cidade renova a imagem.

Ainda haveremos de a sentir em todo o seu esplendor!

24 de março de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO XII

Isto de teletrabalho tem o que se lhe diga! Mandem-me para a escola, depressa! Estou mais cansada a trabalhar em casa do que se estivesse com alunos. Livra!
Ele é estar constantemente frente ao computador para webinares, para contactos no teams e no email.
Ele é estar constantemente com o telemóvel na mão para contactos no whatsapp e no messenger.
Ele é receber trabalhos de alunos e corrigir, trabalhos esses que seriam feitos em sala de aula, se estivéssemos na escola, e que não viriam para casa.
Ele é tratar de toda a avaliação de final de período!
E, além disto, são três pessoas em casa 24h sobre 24 horas, o que não é habitual!
Ele é cozinhar almoços e jantares.
Ele é fazer pão para se evitar as idas à padaria.
Ele é arrumar a casa e passar a ferro.
...
E assim vamos empurrando os dias. Por vezes, com violentos encontrões!



23 de março de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO XI

COVID-19: Novo balanço aponta para 23 mortes, 2.060 casos confirmados e 14 recuperados em Portugal

Notícia de hoje. Nada animadora. O estado de emergência deverá ser prolongado. 
Ordens do Ministério da Educação: a avaliação do segundo período tem de ser feita normalmente. À distância, pois claro!
E a gente burra continua a ser burra e a pôr em risco a saúde de todos. 
Ontem foi um tal passear na Póvoa de Varzim. Imagens de pessoas em grandes grupos a passear, como se de um domingo normal de verão se tratasse, circularam todo o dia. Foi preciso haver intervenção da polícia e proibições por parte da Câmara Municipal.
Hoje, em S. João da Madeira, testemunhado por uma das minhas irmãs, repetiu-se a cena. Passo a contar a primeira história:
Claro que as pessoas não podem ver um raio de sol e, hoje, foram muitos a inundar a cidade, desde manhã cedo. Então, há que ir sentar-se na esplanada de um café, que a tinha montada, para consumir o que se adquiriu na padaria ao lado. Tudo muito descansadinho! Entretanto, no exterior da padaria, mais um aglomerado de gente burra, copos de café nas mãos. Vem a polícia, manda dispersar e segue para outras paragens. Na passadeira, duas mulheres vêm juntas, em amena cavaqueira, veem a polícia, disfarçam e afastam-se, não vá irem presas! No entanto, ficam à cuca, atrás de uma árvore:
- Já foram embora - diz uma delas.
E lá seguem as duas, muito juntinhas, pois a conversa não pode ser interrompida. Qual polícia, qual quê! Qual Covid, qual quê! E, como não há duas sem três, um homem junta-se a elas (a três a roupa suja fica mais bem lavada!!!) e diz:
- Afinal, parece que temos mesmo de ficar em casa!
Mas não ficam! Será assim tão difícil entender isto?

Segue-se a segunda história:
O maravilhoso parque do Rio Ul foi fechado, hoje. O espaço é enorme, cheio de ar puro. Logicamente as pessoas pensaram que poderiam lá ir dar uma corridinha saudável. Pensaram mal porque pensaram todas o mesmo. E as corridinhas deram lugar a piqueniques e longos passeios de muita gente em amena cavaqueira.
Qual é a parte de TEMOS DE FICAR EM CASA que as pessoas ainda não entenderam?
LIVRA! (e isto é para ser bem educada porque na cabeça saiu outra coisa!)

PS: acabei de ver no jornal O Regional (são quase 22horas) que foi confirmada a primeira morte por Covid 19 em S. João da Madeira. https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=3182612485104699&id=188289671203677

22 de março de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO X

Finalmente percebi por que motivo as pessoas andam a açambarcar tanto papel higiénico. É porque tudo isto que se está a passar é uma grande merda! Do tamanho do MUNDO!
E lembrei-me de tantos livros que relatam a mesma merda, as mesmas angústias, as mesmas formas de enfrentar o touro furioso!
A começar pelo meu livro O santo guloso. Uma fábula para contar às crianças a peste negra da Idade Média, onde pessoas e animais morreram em doses industriais. 
E lembrei-me da Anne Frank (e de todos os outros livros que têm como cenário os campos de concentração). 
Anne Frank não é personagem, não é ficção. Viveu em clausura durante dois anos. E não foi em sua casa onde tinha todos os seus objetos pessoais e o seu conforto. E não tinha televisão, nem Internet, nem redes sociais, nem podia fazer videoconferências, nem estudar em teletrabalho, nem sequer gritar alto para espairecer.
E aproveitei para reler a história, lendo o livro em diário gráfico.
O que nos resta, então? Ler. Escrever. Ver filmes. Restam-nos as palavras, em suma. A vida há de regressar em toda a sua plenitude. Haveremos de voltar à escola, ao ginásio, aos parques, aos cinemas, aos restaurantes, ao convívio, aos abraços. Entretanto, enquanto isso não acontece, refugiemo-nos nas palavras. E lembrei-me de uns acrósticos antigos. Fui buscá-los:
I
Palavras soltas preenchem
A folha em branco da vida;
Libertam a angústia e a solidão,
Alimentam a verdade.
Violentas, quando ferem e magoam;
Relaxantes, quando amam.
Acolhem segredos.
Silenciosas, gritam.

II

Ler é lazer.
Elevado ao infinito
Resulta em prazer.
III

Ler+ é fazer uma festa
E deixarmo-nos embriagar pelo cheiro dos livros.
Indicando-nos caminhos a percorrer,
Tiram-nos a solidão.
Um a um, cada livro lido
Resplandece em nós.
Alimenta-nos a alma
Seda-nos o corpo.


21 de março de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO IX

Não, não estamos todos felizes por estarmos em casa resguardados com a família.
Não, não estamos todos felizes, como queremos fazer crer nas redes sociais mostrando as nossas fotos de pãozinho acabado de cozer, de bolos saborosos acabados de fazer, de pratos cheios de imaginação acabados de criar. Eu faço-o!
Estou certa que os psicólogos e os sociólogos terão resmas de materiais para análise. Irão surgir resmas de teses sobre o que cada um de nós tenta fazer para transparecer que está tudo bem. 
Tudo para nos iludirmos e alimentarmos a esperança. Porque as coisas não estão bem. Há uma ameaça a sobrevoar-nos. E não adianta convencermo-nos que o Covid19 (ou o raio que o parta!!!) traz coisas boas que não faríamos se ele não tivesse vindo assombrar as nossas existências.
Sim, estou mais tempo com a família nuclear, mas não estou com a restante.
Sim, visto roupa que já não vestia há séculos, mas não visto a mais recente, nem compro nova, nem vou à cabeleireira, que está sem trabalho, nem tenho a funcionária a limpar-me a casa porque também ela está em casa, sem trabalhar.
Sim, não aturo presencialmente os alunos, mas tenho saudades deles e dos debates e do contacto direto com eles na biblioteca. Sim, porque nem todos tiveram tempo de se precaverem e de irem buscar os livros que estão à espera de serem lidos, nas bibliotecas encerradas.
Sim, os professores descobriram as milhentas ferramentas tecnológicas que existem para darem aulas à distância, mas não tiveram tempo de se organizarem para que o trabalho fosse gerido em articulação e muitos nem tempo tiveram para aprender a dominá-las.
E tudo o que passamos nas redes sociais não passa de uma forma de nos iludirmos. 
Eu também tento iludir-me. Hoje vesti um vestido, pus uns brincos, pintei os lábios e fui para o terraço ver a banda passar. Mas não passou!

ESTA LÍNGUA PORTUGUESA

No Dia Mundial da Poesia, a minha homenagem à poesia e à beleza da língua portuguesa.

Que língua é esta que permite rimar
Liberdade, dignidade, lealdade
Com desigualdade, maldade, crueldade?

Que língua é esta que permite rimar
Ciência, sapiência, inteligência,
Com violência, insolência, indolência?

Que língua é esta que tem coração, união e paixão
E deixa entrar a solidão e a corrupção?

Que língua é esta que tem pão
E deixa entrar a fome e a palavra não?

São apenas aparentes contradições
De uma língua viva, plena de emoções!

Porque esta é uma língua apaixonada
Que faz o amor ter sabor a romã.

É uma língua que permite rumar a sul
E perder o norte
Na dança do planeta azul.

É a língua que fica a ver estrelas
Nas noites em branco.

É uma língua de braços abertos
E de mão beijada
Tem o coração ao pé da boca
E em lágrimas se desfaz.

É a língua casamenteira
Que não dá ponto sem nó
Casa o quadro com a quadra
O cigarro com a cigarra
E faz a festa da palavra.

É uma língua maiúscula
Com sabor a mar
E sabor a mel
Com sabor a sol
E sabor a sal
Com sabor a lua
E sabor a céu
Com sabor a rosas
E sabor a vento.

Esta é a língua
Que tem a palavra chuva
E cheiro a terra molhada
Que tem a palavra praia
E o cheiro da maresia
Que tem a palavra flor
E cheira a jasmim
Que tem a palavra calor
E o perfume do amor.

Esta é a língua
Para musicar e cantar
Para falar e ronronar
Para respirar e saborear
E, ainda, imaginar.

Esta é a língua
Que tem a cor dos girassóis
E da melancia
Que faz rimar
Melodia e harmonia.

Abençoada língua esta
Que permite rimar
Agasalhar e beijar
Criticar e desabafar
Pensar e gritar
Viajar e poemar.

Uma língua assim, de tudo é capaz.
É com esta arma que se constrói a paz!

20 de março de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO VIII

Faz uma semana que tudo começou.
Hoje, sexta-feira, seria dia de trabalhar na biblioteca, de manhã (às vezes noutra biblioteca à tarde, quando é preciso). Seria dia de espairecer da semana de trabalho. Seria dia de ter uma relaxante aula de pilates no ginásio. Seria dia de ir ao cabeleireiro. Seria noite de encontro com a família, à  volta de uma mesa bem servida e recheada de conversas. E de tricô.
Seria noite de peregrinação poética na cidade onde moro.
Mas não foi nada disto. O país está em estado de emergência, desde quarta-feira passada, numa tentativa desesperada de travar o bicho. Parece que está a dar algum resultado, mas o fundo do túnel está longe.
O dia seria de... Mas não foi.
Foi dia de mais um banho de assento a enfrentar a tecnologia. Experiências no Teams, partilhas no Facebook e em seis Whatsapps, publicações no Padlet e no Youtube, telefonemas.
Foi dia de aniversário de uma irmã. Sem beijos nem abraços. Apenas parabéns à distância.
Foi dia de passar a ferro.
Foi dia de fazer pão.
Foi dia de chuva que veio trazer a primavera.
Foi dia de escrever um haiku. Porque ainda há  beleza nas palavras mais simples (algumas deveriam ser proibidas de existir!).
CHUVA 
Por entre as tuas gotas
(cais, implacável!)
Vislumbro dias de sol.

19 de março de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO VII

Lá fora vive o escuro e o medo avança.
Hoje é o Dia do Pai e decidi enfrentar o medo para te poder atirar um beijo, mas não te dei uma flor.  Não me atrevi a ir comprá-la e as minhas floreiras no terraço estão um caos, só têm ervas. Antes de sair de casa, pensei que, provavelmente, o cemitério estaria fechado. E, estando aberto, colocou-se a questão: quantas pessoas lá estarão? Isso preocupou-me. E é isto! Temos medo das pessoas e já sinto falta dos abraços.
Fui. Cemitério de portas abertas. Três pessoas, apenas, e o silêncio que o lugar requer. Normalmente, quando te visito, o silêncio e o recolhimento trazem algum bem-estar, são momentos em que podemos ficar sós, apenas nós os dois. Hoje, foi diferente. O silêncio impôs-se em todo lado, já não fez diferença.
Mas, por momentos, senti a liberdade de poder conduzir, mesmo que nem dois quilómetros tenha feito. E pude apreciar bandos de andorinhas que vieram trazer a primavera.

18 de março de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO VI

A situação está a agravar-se. O número de infetados, hoje, subiu para 642. O Presidente da República decretou estado de emergência. O Primeiro Ministro apela: "Para salvar vidas é preciso que a vida continue".
O Mundo está a sofrer e o fim não está à vista.
Olhar à nossa volta é desolador. Assistir às notícias na televisão é desolador. Seguir as publicações no Facebook é desolador.
Por muito que me queira abstrair com trabalho, é quase impossível, a menos que atire com o telemóvel para bem longe.
Parece que há um silêncio sepulcral no meio de tanto ruído nas redes sociais e nos media.
Um silêncio de respeito por todos que foram infetados por um vírus abusador que não escolhe por onde passa. 
Um silêncio de respeito por todos aqueles que estão na linha da frente para que nada falte a quem precisa.
Um silêncio de respeito por aqueles que ficaram completamente sós fechados em casa.
Um silêncio de respeito pelo medo que nos tolhe a todos.
E neste momento já sinto falta do barulho da escola, dos gritos dos jovens sempre cheios de energia, dos abraços das crianças, das conversas...
Parece que já não ouço o trânsito na rua. Da minha janela, apenas vislumbro os vizinhos dos prédios por trás do meu. Um que pedala na varanda. Uma que sacode tapetes à janela. Outro que fuma um cigarro no terraço. Apenas o grasnar das pombas e o voo da cegonha, que se passeia pelo alto do meu quinto andar, indiferentes ao vírus, mostram vida.
Até o carteiro que vem trazer uma encomenda não é recebido da mesma forma. Assinou por nós, demos-lhe autorização. A encomenda veio pelo elevador, ficou fora de portas, foi desinfetada e ficou a arejar antes de ser aberta. 
Até quando?

17 de março de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO V

Desde que estou em casa (sexta-feira passada, pelo meio da tarde), só saí ontem para ir levar plásticos e papel ao ecoponto que fica no cimo da minha rua. Aproveitei para dar uma corrida no regresso.
Só hoje tive mesmo de sair para ir ao supermercado. Três bocas em casa precisam de alimento e há coisas que têm de ser feitas, caso contrário não se morre da doença morre-se da cura!
E foi surreal! Senti-me completamente mergulhada num filme de terror, vivido noutro planeta, noutra dimensão!
Pessoas a entrarem no supermercado à vez. Pessoas com luvas e máscaras. Pessoas com olhares desconfiados como se quem está a uns metros de distância fosse inimigo a abater. Funcionários a alertar para as tiras no chão a demarcar distâncias.
E o sol sem querer saber e a brilhar, a convidar para o passeio, para o convívio!
As notícias não são animadoras. O número de pessoas afetadas subiu para 448. 
Trabalhemos para esquecer. Os alunos começaram a enviar os trabalhos que deveriam realizar no horário normal de aulas. Espero bem que Luís de Camões os ajude a ultrapassar o problema atual. O trabalho, afinal, não é trabalho, é ler poesia. E escrever sobre o mundo e o seu desconcerto. Vamos tentar escrever um conto coletivamente, o desafio já foi enviado.
Tarde de catalogação e de trocas de mensagens com alunos.
As notícias chegadas a meio da tarde não são animadoras. Em Ovar foi declarado estado de calamidade. Há famílias inteiras infetadas!
Pelas 17h, aula virtual sobre utilização do Edmodo. Não há paciência com a falta de paciência de certas pessoas. Às 17h, hora marcada, imensos professores já tinham entrado no site, mas a sessão não começava. Problemas técnicos, suponho! Mas não faltaram comentários depreciativos sobre o atraso. Por vezes tenho vergonha de ser portuguesa. Por vezes tenho vergonha de ser professora!
(Ainda bem que é só por vezes!!!)
Hoje não me apetece escrever mais, embora o dia ainda não tenha acabado.

16 de março de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO - IV

Primeiro dia de uma semana sem escola. Primeiro dia de trabalho domiciliário. Terceiro dia de clausura.
7h15 da manhã e já estou a pé. Felizmente os canais de cinema existem para amparar insónias. 
Isabelle Hupert despertou-me para o dia. 
Manhã inteira com trabalho de catalogação. O telemóvel requer atenção constante. Chegam notificações do Facebook, Whatsapp, Messenger e Instagram. Difícil concentrar para trabalhar. 
Reunião de departamento por email. Há assuntos a resolver e a avaliação dos alunos, que teria de ser feita dentro de 15 dias, está comprometida. 
Tomara eu que o problema do mundo atual fosse a avaliação dos alunos! Estaríamos todos bem mais sossegados! Neste contexto, a avaliação é o último dos problemas. Aliás, nem chega a ser problema!
E a catalogação prolonga-se durante a tarde. Até à hora de um tempo de pilates caseiro. Vivam as tecnologias! O ginásio tem publicado vídeos onde os instrutores  mostram os músculos em corpos fitness e explicam os exercícios a fazer em casa. A bem da sanidade mental. E do corpinho que se irá ressentir de tanta hora na cadeira. Apenas os dedos se exercitam a dar pancada no teclado.
Hora de jantar. Hora do tricô. E de mais um filme.
Amanhã, vai ser preciso sair para fazer compras!

15 de março de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO - III

Hoje seria um domingo normal, se não fosse a anormalidade da situação. Choveu e a vontade de sair diminuiu.
As redes sociais ganham força numa altura destas , mas apetece desligar tudo. Já não se aguenta a televisão, já não se aguentam os boatos no Facebook. Ora é uma gravação de um suposto médico que não se identifica e tem um discurso altamente perturbador de tão alarmista. Ora é um contacto que substitui a linha 24 e que não existe. Ora é o Cristiano Ronaldo que vai transformar os seus hotéis em hospitais (e sobe a sua popularidade e grandiosidade!!!). E o pessoal partilha tudo a torto e a direito, porque sim! E os jornalistas incendeiam ainda mais. Há os que ligam para a linha saúde 24 para provar que a linha está entupida! 
Quanta estupidez habita este mundo! Uma estupidez bem mais perigosa do que o vírus. 

14 de março de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO - II

Sábado de um fim de semana que se adivinha... diferente!
Não houve a habitual saída à Praça para um café e compras.
Não houve saída para o cabeleireiro.
Não houve saída para um café, depois de almoço, nem para jantar fora.
Hoje seria dia de aniversário. 80 anos da mãe. A festa programada há meses foi suspensa. O sacana do vírus não está para festas. O seu mau humor ataca tudo que possa. É preciso ter muita cautela e o grupo seria grande. Muitos andaram por fora, por lugares contaminados. Nenhum de nós se atreveu, sequer, a ir dar um beijo à aniversariante. Triste. Tão triste!
Choveram mensagens o dia todo no whatsapp da família e no Facebook. As minhas mensagens:
"A criança via fazer uma birra e só vai nascer quando todos puderem estar juntos para lhe fazerem a festa que ela merece. Mais uma vez, está a ser posta à prova para mostrar que é uma guerreira. Muitos parabéns. Teremos muitos anos para festejar porque os 100 ainda estão longe. Beijinhos enormes."
"Muitos parabéns pelos teus 80 anos de vida. E obrigada por tantas vidas que geraste. A tua festa não se fará hoje, mas não perdes pela demora! Se não for antes, festejaremos em agosto o meu e o teu aniversários. Ainda haveremos de festejar juntas os meus 80 e os teus 100. Muitos beijinhos."

Abençoada tecnologia que nos juntou todos. Conseguimos cantar os parabéns em simultâneo e conversar em tempo real. Não houve bolo, nem velas, nem comida a rodos. Mas houve união, mesmo que à distância.

13 de março de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO - I

Parece que uma sexta-feira 13 cumpriu a missão de trazer o azar!
Até hoje, a minha apreensão e o  meu medo face ao coronavírus eram muito relativos. Hoje, porém, tudo mudou. Os casos em Portugal começaram a subir e fala-se em fechar as escolas a partir do próximo dia 16.
A minha escola, hoje, parecia quase uma escola fantasma. Os alunos anteciparam-se à ordem do Ministério e ficaram em casa (espero eu!). Dos 25 alunos da minha turma apenas cinco estiveram presentes.
De repente, com o anúncio de todas as atividades extracurriculares canceladas, fiquei apenas com um trabalho para fazer: catalogação. E assim passei toda a manhã, além de aconselhar livros aos alunos que foram à escola e quiseram ir para casa prevenidos.
- Professora, quantos livros posso requisitar para os dias todos em casa? 
- Professora, posso ir escolher livros? Serão 4 semanas em casa! 
Só espero que o vírus da leitura seja altamente contagioso!
Saí da biblioteca com um saco de livros para catalogar. Não sabia, ainda, se o fecho das escolas implicaria que os professores ficassem a trabalhar em casa. Muitos rumores se leram na Internet, com opiniões contraditórias!
Durante a tarde ainda fui trabalhar numa biblioteca do 1ºciclo. Trouxe para casa mais um saco para catalogar.
A informação definitiva que os professores iriam ficar em casa, em teletrabalho, chegou, finalmente! Voltei à escola para trazer mais livros. Ficou a tenda montada no meu escritório.
E a tarde terminou depois de ter enviado emails de trabalho. A biblioteca terá de ser usada fora de portas, através do blogue e das redes sociais.
E a preocupação instalou-se! Afinal, o caso é sério! Afinal, estamos a viver uma pandemia que está a alastrar a um ritmo vertiginoso. Quando irá parar? Onde iremos parar?

8 de março de 2020

"OS DIAS SÃO ASSIM" - LANÇAMENTO NA BIBLIOTECA MUNICIPAL RENATO ARAÚJO

O dia 6 de março de 2020 fica marcado na minha história, enquanto autora, como o dia do nascimento do sexto livro, o segundo com vários contos para um público mais crescido.
Os dias são assim é um livro com 12 contos, mas há uma 13ª história que não está nele. É a história do título que mudou três vezes.
Inicialmente, dei-lhe o título “O pintor da noite e outros contos”. O pintor da noite é o primeiro conto, para mim o mais poético, pelo que seria um título apelativo. Mas, seguido de “e outros contos”, seria banal pois há imensos livros assim, com o título de um dos contos e … outros contos. Então, pensei noutro que, numa única palavra, abrangesse o assunto de todos os contos, que fosse transversal a todos. Surgiu “Silêncios”. Soou-me bem. Se há palavras que são gritos, chamadas de atenção, há outras que escondem silêncios, por vezes mais ruidosos que um grito. Neste livro há silêncios gritados que se ouvem nas entrelinhas da maioria dos contos. Os seus leitores, provavelmente, irão ouvir esses gritos mudos que as palavras tentam esconder. E foi este título que a Isabel trabalhou para a ilustração da capa, com um S estilizado a ocupar toda a página.
Mas, no dia em que um amigo apresentou o seu último livro, uma sua amiga poetisa falou de um livro que tinha escrito e que se intitulava… Silêncios. O céu desabou sobre mim. Como poderia eu dar um título a um livro meu se ele já tinha dono?
Foi preciso repensar, mudar, criar outro. Até que surgiu este, Os dias são assim. O que veio complicar a vida à Isabel Pelaez, a ilustradora, pois ela teria de mudar a capa de uma palavra para quatro. 
De facto, os dias são assim, cheios de complicações. Mas também são cheios de vidas que vivem cá dentro do livro. Umas reais, outras inventadas, outras com um cruzamento de realidade e ficção. Cabe a cada leitor tentar imaginar quais são as histórias reais e as fictícias. Depois mo dirão. Mas, peço-vos, não tentem encontrar dados autobiográficos que não os vão encontrar. A minha vida não tem nada digno de uma história. Pelo contrário, as histórias deste livro estão cheias de vidas sentidas. O olhar atento da Isabel fê-la vislumbrar no novo título um S em todas as palavras. Deste modo, teve a feliz ideia de manter o S estilizado inicial e adaptar-lhe o resto das letras. Os silêncios mantêm-se, assim, ao longo deste S e nas ilustrações a preto e branco. Porque os dias são assim. Uns cheios de palavras, outros de silêncios. Uns cheios de claridade, outros de cinzas. 
Desejo a todos os leitores que o meu novo livro lhes proporcione bons momentos de leitura. Tão bons como os que eu passei a escrevê-lo.

Notícia no jornal Labor.