29 de junho de 2013

QUANDO A INDIGÊNCIA NOS CAI AO LADO

"Faça o que puder, com o que tem, onde estiver." Theodore Roosevelt 

Hoje, provei um Porto de vários sabores. Consumi Porto durante os quatro anos que duraram o curso na Faculdade de Letras. E o Porto ficou ferrado cá dentro. Fundo. 
Muitos anos se passaram desde então. Já não passeava a baixa desta cidade há imenso tempo e, hoje, voltei. A tarde convidava a calcorreá-la e, depois de um inverno rigoroso, foi como se tivesse acordado estremunhada nas suas ruas, ladeadas de esplanadas cheias de gente a abraçar o sol que, desde manhã cedo, desabou sobre a cidade. Em quase todos os cafés, cartazes apregoavam a gulosa francesinha. Descobri que Santa Catarina continua com o seu ar cosmopolita de que me lembrava. E tudo à sua volta se mantinha. As mesmas lojas, as mesmas montras. Os mesmos carris a sulcar as ruas, agora sem elétricos.
E a saudade de tempos tão felizes deu lugar à surpresa. Distraída à procura de vestígios de alguma mudança, caiu-me ao lado a indigência. 
(...)
Continua, in Os dias são assim

23 de junho de 2013

AMOR AO PRIMEIRO ENCONTRO

Foi amor ao primeiro encontro e a relação intensificou-se. Longe deles, sinto ansiedade, o desassossego é difícil de controlar. 
Absorvo o cheiro das suas peles, tão macias, acaricio-as com entusiasmo e, após uns momentos de namoro, a quietude regressa. É uma relação polígama, bem sei, mas desejo-os para recuperar a serenidade. Sem eles, a imaginação atrofia, as ideias acorrentam-se e a solidão torna-se insuportável. Sem eles, tudo é escuridão. Eles trazem a luz. Tranquilamente provocadores. Os livros.

desafio nº45 da Margarida Fonseca Santos

16 de junho de 2013

NÃO HÁ FEIRA, MAS HÁ ESCRITORES

Num mundo (leia-se país) onde anda tudo do avesso, não haver Feira do Livro no Porto faz todo o sentido. E a culpa disto é da chuva que cá se instalou e do sol que cá não se quer instalar. 
A economia em Portugal não cresceu por causa da chuva. O investimento caiu por causa da chuva. Está tudo tolo devido a tanta água. 
A decisão de não haver Feira do Livro no Porto, provavelmente, também se deve à chuva. Pois, se todos os anos, no período em que decorre a Feira, chove, faz frio e as orvalhadas de S. João são regra, para quê tirar as pessoas de casa, sujeitas a ficarem doentes? 
Quando a Feira do Livro decorria no Palácio de Cristal, vá lá, entendia-se que se realizasse, sempre era um espaço fechado, as pessoas não se molhavam. Mas, na Avenida dos Aliados, não é assim. Os leitores molham-se, os autores que lá estão a dar autógrafos apanham resfriados, os editores e livreiros, de plantão todo o dia e noite, correm o risco de apanhar pneumonias… E isto não é nada bom para o país. Os doentes não produzem e aumentam a despesa pública! 
Portanto, está explicado. 
Feira do Livro para quê? As pessoas que vão à Feira do Livro compram livros e quem compra livros tem o hábito de os ler (com chuva ou sem ela!!!). Quem lê aprende a pensar e a criticar, a contestar e a incomodar, mesmo com chuva! 
Numa altura em que o país regride a olhos vistos, parece que vai voltar ao tempo em que pensar e incomodar é crime. 
E o silêncio instalou-se no Porto. Um silêncio que nem as marchas populares conseguem contrariar porque morreu um evento com tantos anos de vida. 
Gosto do Porto. Não gostei que o Porto tivesse matado a Feira do Livro.

11 de junho de 2013

ESPERA

Pedro esperou pacientemente, a vida toda, que Laura lhe dissesse sim. Mas, sempre que ouvia sim da boca dela, não era o sim que queria ouvir. Tinha o sabor amargo do não. 
- Não te preocupes, sim? Um dia de cada vez. 
- Espera, sim? Para quê tanta pressa? 
- Sim, já pensei. 
Finalmente disse sim. Mas disse-o ao Luís, na presença de cento e cinquenta convidados que animaram a festa onde as lágrimas de Pedro não entraram. 

(77palavras, desafio Rádio Sim nº2: usar 7 vezes a palavra SIM)

LER ACALMA

ilustração de Jessie Willcox Smith

Chega a noite e o sol já dorme. Lia não quer que a luz se vá. Tem medo do negro da noite. Pega num livro, trilho para a calma. Lê e ri. Solta os medos sempre que vira mais uma folha. 
Pousa o livro e dorme. Sonha com bruxas e fadas, elfos e magos. As horas passam, lentas. E nasce uma manhã nova feita de risos claros. Sem fome nem frio. Sem lama, sem manchas, sem sombras.

(77palavras, desafio nº44:  usar apenas palavras com uma ou duas sílabas)