31 de dezembro de 2021

ADEUS, 2021!

 Estúpido 2021! Com que então não quiseste ficar atrás do teu antecessor e vieste de má cara, continuaste de má cara e terminas ainda com cara pior. Parece que te zangaste comigo por não te ter recebido condignamente, por ter optado por vestir o pijama e dormir cedo em vez de ir para a ramboia com champagne e gente aos montes, bem sabes que não se podia fazer isso, o idiota do bicho não deixava, e ainda não deixa, mas houve quem o tenha feito, dizes tu e eu bem sei, mas sabes que eu sempre gostei de cumprir as regras, acho que tenho de deixar de o fazer, ando sempre lixada com tanto cumprimento que até ando zonza da cabeça que é para não dizer um palavrão, que por dentro tenho dito muitos, mas enfim, vamos ao que interessa e o que interessa é que podes continuar zangado pois se não fiz festa para te receber, também não faço festa para te mandar para os quintos dos infernos, nem para receber o teu sucessor. Ainda pensei comprar um pijama de lantejoulas, sempre dava um bocado de glamour à noite, mas não encontrei nenhum e, para o efeito ia dar no mesmo, quem sabe as lantejoulas não me deixariam dormir descansada e dormir é o que eu mais quero, enquanto durmo, não vejo, não ouço, não discuto, não penso. Por isso, avisa o teu sucessor que tire o cavalinho da chuva pois festa para o receber também não vai haver e diz-lhe para deixar de lado a estupidez e que se livre de querer imitar-te. Ah! Há outra coisa que eu mais quero que é apagar palavras do dicionário, pois os entendidos em feng shui, seja lá o que isso for, dizem que esta noite é de lua minguante por isso em vez de pedirmos coisas boas devemos pedir que as coisas más diminuam e é por isso que quero eliminar muitas palavras, vai-se a ver começam todas com a mesma letra, deve ser o karma que tem muita força e tu trouxeste alguns desaires à minha família durante este teu ano estúpido e se não acreditas faço-te uma lista, desastre e destruição do automóvel, despesas, doenças, discórdias, discussões, descrédito, desilusão, desânimo, distância, desamigamentos… e nem vou continuar!

Põe-te fino e passa a palavra a 2022 para que se ponha fino, também, e que deixe as idiotices de uma vez por todas que já estamos todos fartos.


12 de novembro de 2021

O BIZARRO MUNDO

O bizarro mundo continua a girar, esta é uma história de pasmar.

Guerra, violação, corrupção,

Egoísmo, deseducação, exclusão,

Fome, miséria, injustiça, doença, 

Poluição, destruição, pouca crença,

Irracionalidade, desigualdade, crueldade,

Abuso de poder, falta de solidariedade,

Ignorância, falsa amizade, insolência

Atentados, crimes, violência. 

Tantas são as pedras que fazem a engrenagem encravar. Ai! Ele vai estourar!

Mas, há sempre alguém que sabe esperar, há sempre alguém pronto a amar.

Então, resiliente, estoico, o bizarro mundo continua a girar…

Desafio nº 254 – frase de Paul Auster


23 de outubro de 2021

LANÇAMENTO DO LIVRO "A VASSOURA QUE DESVASSOUROU"

Muita emoção nesta noite do lançamento do meu novo livro com fantásticas ilustrações da Cátia Vide e editado por João Manuel Ribeiro (Editora Trinta Por uma Linha). A apresentação esteve a cargo da Dr.ª Cristina Marques e a Autarquia fez-se representar pela vereadora Dr.ª Paula Gaio.

Sinopse: A vassoura está gasta, já quase sem pelos. Cansada de tanto varrer, decide fazer greve. Solidários, e também eles fartos de trabalhar, esfregões, panos, tachos, panelas, frigideira e, ainda, o galo, que prevê o seu fim num enorme tacho, juntam-se à vassoura numa manifestação tão ruidosa que deixam a velha enloucada.







18 de setembro de 2021

11 de agosto de 2021

MOMENTO

Chegam sem dar nas vistas.

Vestem T-shirts e bermudas que despem deixando as boxers à vista de olhares indiscretos. Branco imaculado as boxers de um, alto, corpo atlético. Às riscas coloridas, as boxers do outro, baixo, de barriga proeminente. De idade indecifrável, entre 60 e 70 qualquer número lhes ficará bem.

Do saco que um deles transporta, tiram duas pequenas toalhas (tamanho toalha de rosto). Com gestos simultâneos, enrolam-nas à volta da cinta e deixam cair as boxers na areia, rapidamente trocadas por calções de banho. Cor-de-rosa, os calções de um. Vermelho, os calções do outro.

Dirigem-se ao mar e mergulham em simultâneo. Um decide enfrentar o frio da água, nada para longe e desaparece. O outro regressa à praia. Mantém-se ao alto, pés na água, alerta. Perscruta o horizonte numa espera inquieta.

Eis que um sorriso se instala no rosto. Ao longe, uma cabeça espreita da água e fortes braçadas, num crawl perfeito, devolvem o atleta ao areal.

Não decorreu nem meia hora. Regressam ao local da roupa abandonada, enrolam as toalhas à volta da cinta, deixam cair os calções de banho na areia.  Cor-de-rosa, os calções de um. Vermelho, os calções do outro. Vestem as boxers. Branco imaculado as boxers de um. Às riscas coloridas, as boxers do outro. Vestem as bermudas. Vão ao mar tirar a areia dos calções de banho que, espremidos, são embrulhados nas toalhas.

Partem para donde vieram. Uma passagem pela praia quase etérea. Poucas palavras trocam, os olhares são mais eloquentes.

O amor não precisa de palavras. Apenas de sintonia.


12 de junho de 2021

TELHADOS

Da janela, Maria vê telhados. O que esconderão?

Uns observam a noiva numa felicidade ansiosa. Outros ouvem o choro do recém-nascido. Alguns testemunham o embalo da leitura entre mãe e filha, antes do beijo de boa noite. Outros enternecem-se com o casal de velhinhos que, de mãos dadas, trocam memórias.

Também ela vive sob um telhado. O seu encobre segredos. E se ele os conta? Envergonhada, envolve-se num xaile negro para esconder as nódoas ainda mais negras.

Desafio nº 244 – imagem de telhados


10 de junho de 2021

DIA DE PORTUGAL, DIA DE CAMÕES

10 de junho é Dia de Portugal. É dia das Comunidades Portuguesas. É Dia de Camões. Este ano passam 441 anos da morte deste grande poeta que tanto enalteceu a língua portuguesa. Assim, a ele me dirijo, pois ele vive cá em casa, e com ele convivo.

Gostaria de te dizer, caro Luís, que o meu amor por ti foi um amor à primeira vista, mas tal não aconteceu. Foste-me apresentado nas aulas de Português, era eu uma catraia, mas não me foi mostrada a tua genialidade nem a grandiosidade da tua obra. Tu eras o chato que tinha escrito frases complexas cheias de orações para dividir, cheias de conjunções para classificar. Não me mostraram o quanto a tua epopeia é fabulosa, mas fizeram-me descobrir o quanto ela está recheada de “ques” difíceis de classificar. “O fraco rei faz fraca a forte gente”, escreveste tu. E digo eu: o fraco pedagogo faz fraco o forte aluno.

Conheci-te verdadeiramente e, por fim, por ti me apaixonei, mais tarde, mais velha, quando comprei a tua obra completa (a tal onde habitas em destaque nas estantes da minha biblioteca) e nela mergulhei de cabeça (e coração!). E descobri, então, os teus sonetos, as tuas endechas, as tuas redondilhas... E Os Lusíadas! Que obra de génio! 

“Mudam-se os tempos mudam-se as vontades”, lá o disseste, mas o tempo não te desgastou, antes pelo contrário, as tuas frases saíram da tua obra, foram apropriadas pelos falantes atuais e continuam a enriquecer o património linguístico desta “ocidental praia lusitana” que, “cantando e rindo” tão longe chegou e, “se mais mundos houvera, lá chegara”.

Hoje, como professora, quero que os jovens te conheçam e te leiam e te respeitem, te citem e te imitem. Quero que aprendam contigo a amar a língua portuguesa e a valorizar a nossa História, os nossos valores, o nosso património, em suma, a “ditosa pátria minha amada”. Quero que se inspirem em ti e, como tu, lutem contra todos os obstáculos, com ousadia, sem medo de enfrentar os Adamastores desta vida, pois “nos perigos grandes, o temor é muitas vezes maior que o perigo”. Quero que apreciem a leitura, e a arte em geral, tendo em conta que “quem não sabe a arte, não a estima.” Parece utópico, não achas?

“Coisas impossíveis, é melhor esquecê-las que desejá-las.”, escreveste tu.  Não poderia estar mais de acordo contigo. Mas estes meus desejos não são uma irrealidade. É possível fazer acontecer. E, “com engenho e arte”, se vai espalhando a tua obra!

“Enfim, tudo passa/não sabe o Tempo ter firmeza em nada/e a nossa vida escassa/foge tão apressada”. Por isso, antes que o tempo de cada um passe definitivamente, há que agarrar o que nos preenche, o que nos anima, o que nos alimenta. Refiro-me, obviamente, aos livros escritos por aqueles que, como tu, nos deixaram o seu legado e que com “obras valerosas/Se vão da lei da morte libertando”.

Texto publicado na revista online "A casa do João"


2 de maio de 2021

MÃE


É madrigal nas madrugadas

É música e é murmúrio

É melodia e melopeia

 

É mel e é maçã

É marsupial e mariposa

É magia e magistério


É máquina e é machado

É marcha e é maré

É mergulho e é metáfora

 

É molde e é modelo

É magnetismo e magnitude

É menina e é mulher

 

É o mundo num monossílabo

MÃE

1 de maio de 2021

O QUE ACABEI DE LER

Quando decidi ler este livro e o propus como leitura do Clube de Leitura para o mês de abril, pensei tratar-se de um romance onde o regime vegetariano seria um modo de vida e o centro da intriga.

Cedo verifiquei não ser assim. A vegetariana é um grito de libertação. É o retrato de uma sociedade opressora onde as mulheres são calcadas, caladas, vivem sob o domínio masculino.

Um romance que é um murro no estômago pela crueza das descrições, pela violência da luta pelo direito ao próprio corpo.

O primeiro parágrafo atrai logo o leitor pelo efeito-surpresa: o narrador tem uma mulher completamente insignificante, sem qualquer atrativo. Casa com ela apenas porque não tem nada de repulsivo. “Antes de a minha mulher se ter tornado vegetariana, sempre pensei nela como alguém que não tinha nada de especial. Para dizer a verdade, quando nos conhecemos, nem sequer me senti atraído por ela. Altura mediana; cabelo cortado a direito, nem curto nem comprido; pele amarelada, com um aspeto pouco saudável; maçãs do rosto ligeiramente pronunciadas, o seu ar tímido e frágil disse-me tudo o que precisava de saber.” (…) 

Ele não quer um ser pensante, um ser passivo basta-lhe. E esta mulher, aparentemente passiva, aparentemente sem exigências, serve perfeitamente este homem frustrado que não suporta ninguém superior a ele (nem física nem intelectualmente). Encontra emprego “numa empresa cuja pequena dimensão faria com que valorizassem inevitavelmente as minhas competências banais. E, por isso, era natural que me casasse com a mulher mais trivial do mundo. As mulheres bonitas, inteligentes, sensuais, filhas de famílias ricas – essas teriam acabado por perturbar a minha existência tão cuidadosamente ordenada.”

No entanto, a sua existência foi completamente perturbada a partir do momento em que a mulher lhe diz “Tive um sonho”, a frase que desencadeia a luta da vegetariana contra tudo e todos e conduz à vertigem provocada pela narração dominada por forte carga psicológica. Uma narração a três vozes, três perspetivas diferentes sobre os mesmos acontecimentos e que se complementam.

A minha opinião sobre o livro pode resumir-se nesta passagem: “Estremeceu perante a natureza chocante daquela união, uma união de imagens que eram, ao mesmo tempo, repelentes e irresistivelmente belas.” (página 120). O primeiro capítulo é marcado pela violência física (atitudes do marido e do pai, a cena passada no hospital, a submissão das mulheres). O segundo capítulo é marcado por imagens “irresistivelmente belas” de forte carga sexual que não se tornam chocantes pela beleza das descrições cheias de sensualidade e erotismo: o casal pintado de flores a fazer sexo, as fortes pulsões sexuais do cunhado psicologicamente perturbado por uma atração inusitada, fixação pela nudez da vegetariana.

Ao longo da história, e sobretudo no terceiro capítulo, há fortes indícios do destino desta mulher que decidiu viver para ser uma árvore. Já não é a vegetariana, é um ser vegetal. 

Loucura? Obsessão? Libertação?


SER BIBLIOTECÁRIA É (TAMBÉM) ISTO!

Pequeninas coisas que preenchem a alma.

Pedro era assíduo na Biblioteca Escolar. Agora a frequentar uma escola profissional, voltou à antiga escola para fazer o empréstimo de um DVD necessário para um trabalho. Que lhe recomendasse um livro, também!

Optou por um, o título seduziu-o. Quando o devolveu, deixou-me uma mensagem:

“Obrigado por me recomendar este livro, ele dá uma lição de vida às pessoas. Gostei tanto! É uma história triste, até chorei, mas faz bem chorar.”

Desafio RBE 2021

25 de abril de 2021

INFÂNCIA


Infância, lá longe! 

Brincar na rua, saltar à corda na terra estafada, trincar a amora madura colhida na silva atrevida. 

E o verão preguiçoso prolonga-se no tempo.


2 de abril de 2021

ABRIL TRAZ DENTRO A LIBERDADE

 Há um ano, comecei a escrever neste espaço, nesta casa que, agora, sinto como minha. E o meu segundo texto publicado aqui teve Abril como tema. Um ano depois, repito o tema. Abril nunca se esgota. Abril tem dentro dele a liberdade.

Há 47 anos, em abril, conquistou-se a liberdade em Portugal, após um regime de ditadura que durou 48 anos. E, só aí, me apercebi, efetivamente, que ela existia. Era eu uma criança com 13 anos, sem nada saber do mundo. 

Antes do dia 25 de abril de 1974, vivia no meu pequeno meio, rodeada de irmãs, primas e primos e divertíamo-nos, supúnhamos, livremente. Sem nunca ter ouvido a palavra liberdade. Sem imaginar, sequer, que essa palavra era proibida. Sem sentir que não a tínhamos. 

Na escola não se falava disso, claro! A escola servia o poder reinante. Tudo o que interessava que soubéssemos era memorizado. E, se não fosse naturalmente memorizado, a impiedosa palmatória tratava do assunto. No manual único, aprendíamos o português, a história, a geografia, a matemática e a doutrina cristã. No mapa, apontávamos as serras, os rios e os caminhos de ferro. Ensinavam-nos a bordar, a coser botões, a tricotar. Mas não nos ensinavam a descobrir, nem a pensar, muito menos a contestar. 

Em casa, também não se falava disso, apesar de algumas tentativas. Havia um disco de Zeca Afonso que o meu pai nos proibiu de ouvir. Porquê? Veio uma resposta lacónica. 

Quando umas amigas (deduzi, mais tarde, que a família estaria envolvida, clandestinamente, com o partido comunista) disseram que a professora de Educação Visual era da PIDE, não percebi. Em casa, questionei a mãe. Veio uma resposta lacónica.

As minhas leituras de então levavam-me a mundos de aventuras e de grandes paixonetas. Divertiam-me e apaixonavam-me, mas não me ensinavam nada da vida real e, muito menos, de política. 

Vivíamos encarcerados numa sociedade onde prevaleciam o obscurantismo, o preconceito e a falta de direitos. Onde o medo existia porque o perigo de uma denúncia espreitava em todas as esquinas. Mas eu só tinha 13 anos e o meu mundinho era dourado! E não imaginava que alguém lutava e sofria para que a liberdade chegasse um dia e fizesse o país recuperar os sorrisos. 

Portanto, o meu pequeno mundo de ignorância continuou até à Revolução. 

Não posso esquecer a sensação de ver, na televisão, a libertação dos presos políticos e, pela primeira vez, ouvir testemunhos das atrocidades que lhes fizeram nas prisões. 

Não posso esquecer o ambiente eletrizante vivido no Liceu de S. João da Madeira que eu frequentava nessa altura. E houve professores que foram mesmo destituídos por estarem ligados ao regime fascista e que viram as suas vidas viradas do avesso de um dia para o outro. 

O dia 26 de abril de 1974 foi um dia diferente. Respirava-se outro ar. Havia uma sensação de alívio e de libertação. Havia gritos de alegria. Até no vocabulário. Lembro-me de uma amiga dizer o que, na altura, era um palavrão impensável de se dizer em voz alta: “Agora já podemos dizer merda!”.

Bonitas eram as palavras novas que começaram a entrar no léxico de quem as desconhecia, como eu, inocente e ignorante das coisas do mundo. Palavras cheias de sonoridades, de significados, de poesia. Liberdade. Democracia. Direitos. Fim da guerra colonial. 

E, só no ano seguinte, na escola, comecei as leituras que me fizeram abrir os olhos e a mente. Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes, e Constantino, guardador de vacas e de sonhos, de Alves Redol, foram os primeiros livros que me fizeram mergulhar na realidade portuguesa e refletir sobre as desigualdades sociais. Até esse momento, nunca me tinha questionado por que motivo as minhas colegas da escola não tinham continuado os estudos comigo, sobretudo a melhor aluna da turma, que fora trabalhar numa fábrica, com dez anos. Até esse momento, não me questionava sobre nada. Mas, a liberdade recém-conquistada permitiu chegar às estantes os livros proibidos e esses permitiram-nos aprender a refletir e a questionar, a criticar e a contestar. Os discos proibidos também puderam ser colocados na aparelhagem e ouvidos. E as canções de Zeca Afonso, Sérgio Godinho, Manuel Freire, Adriano Correia de Oliveira, Pedro Barroso, Ary dos Santos cantava-as eu em alta voz. Finalmente, tinha percebido o quanto "fazia falta avisar a malta". 

A Revolução tinha chegado. O país começara a mudar. E, finalmente, os sonhos em incubação começaram a tomar forma. O amanhã já não era longe demais.

texto publicado na revista online "A casa do João"


7 de março de 2021

INCÊNDIO


Não é preciso um fósforo para atear o incêndio. 

Em fogo lento, arde a cidade. 

Bastou uma sílaba acesa: flor.






6 de março de 2021

A LITERATURA É UMA FORMA DE ENCANTAR

"Tudo é poetável, desde o amor, passando pelo arroz de tomate, ou às ervilhas com ovos escalfados” disse a poetisa Ana Luísa Amaral, numa entrevista ao JN, em 2015.

É um facto. Dentro de um mesmo texto podem coabitar a ficção e a realidade, o concreto e o imaginário, a prosa e a poesia. Tudo depende da forma como o escritor escreve o que vê e o que sente. O escritor tem um olhar diferente e uma diferente forma de sentir. O escritor “não pode olhar para onde toda a gente está a olhar, mas para o outro lado.”, escreveu Gonçalo M. Tavares.

Através do olhar de um escritor, uma pessoa comum pode originar uma personagem fantástica; um acontecimento banal, ocorrido num dia banal, pode originar uma ação empolgante que deixa o leitor expectante com pressa de chegar à conclusão. E, se o fim for inesperado, melhor ainda, vai fazer com que o leitor estremeça, se questione, chore, ria, se revolte, se deixe enovelar em múltiplas emoções e, sobretudo, que fique inquieto e queira mais.

A literatura é isso mesmo, uma forma de encantar. É um olhar, um sentir com todos os sentidos e perspetivar a vida e o mundo de uma outra forma. Não a do ser humano comum que se cruza com a realidade, ficando, muitas vezes, indiferente ou, quando muito, impressionado durante alguns instantes passageiros, mas a do escritor que se cruza com a realidade e a reconta. À sua maneira, é certo, mas de forma a abanar consciências, a chamar a atenção, como se as palavras fossem gritos dados no silêncio das páginas. Porque o escritor tem essa obrigação (missão? poder?): desassossegar.E foi isso que pretendi (passo a imodéstia) com os contos que fazem parte do meu último livro Os dias são assim. Com grande crueza, se denuncia o fim das coisas e das pessoas nos contos “Fim” ou “D. Cármen Garcia, a bruxa que odiava crianças”. Em “Um Porto de vários sabores“, “Vidas” e “O muro” há pedidos de socorro que não foram ouvidos porque a sociedade, surda e cega, parece fazer questão de ficar muda.

A literatura tem um poder enorme. Não o poder de mudar o mundo, pois, se assim fosse, talvez o mundo fosse perfeito. O seu poder consiste em provocar, revolucionar o pensamento, não deixar esquecer e proteger-nos da tirania e da estupidez através do conhecimento.

Não é por acaso que “Os governos suspeitam da literatura porque é uma força que lhes escapa.”, escreveu o escritor francês Emile Zola.

texto publicado na revista online "A casa do João"

19 de fevereiro de 2021

COM REALISMO

Vivo sempre no presente, pois claro! Com realismo, pés na terra e cabeça bem firme em cima dos ombros.

O futuro, não o conheço. Por isso mesmo, não vale a pena antecipá-lo, nem tentar imaginar o que será. O que for virá. Quero, no entanto, estar cá para o receber.

O passado, já o não tenho. Foi-se. Não que quisesse vê-lo fugir. Antes pelo contrário! Com ele foram-se grandes momentos e as memórias começam a esfumar-se. Lamentavelmente!

Desafio nº 233 – citação de Fernando Pessoa

13 de fevereiro de 2021

31 de janeiro de 2021

O HOLOCAUSTO NA LITERATURA

 Texto escrito para a revista online A Casa do João.


27 de janeiro, dia do aniversário da libertação do Campo de Concentração e Extermínio Nazi de Auschwitz-Birkenau, é dia de lembrar que milhares de pessoas foram vítimas da intolerância levada a extremos.

Uma data que não deveria existir. No entanto, o Holocausto existiu. E, por ter existido, não pode ser esquecido. Não lembrar o passado é um passo para o repetir.

Foram assassinadas milhões de pessoas em nome da pureza da raça ariana, vítimas da sofreguidão de um homem. Hitler chegou ao poder legitimamente com promessas que convenceram. E destruiu a Europa.

Analisando o estado do mundo atual, tudo leva a crer que a História se pode repetir. Os ditadores andam aí, mais ou menos disfarçados de salvadores da pátria, e a enorme crise, desencadeada por uma situação de pandemia, faz os mais crentes (leia-se ingénuos, ignorantes, ou simplesmente cansados da política e dos políticos) acreditarem que, realmente, irão mudar o mundo assim que chegarem ao poder. Engano perigoso!

Há uma urgência em criar mais humanidade. O Holocausto é o exemplo de um período negro de desumanidade, de atrocidades, de violações constantes dos direitos humanos. Um exemplo que gente de bem não quer repetir. O Holocausto existiu. Não foi inventado por escritores nem por realizadores.

Sempre acreditei que a literatura, e as artes em geral, a par da História, poderiam humanizar o Mundo. E continuo a acreditar. Mas, para isso acontecer, teriam de ser “consumidas” por todos.

Costumo dizer aos meus alunos que toda a gente, sem exceção, deveria ler, pelo menos, um livro sobre o Holocausto. E visitar os campos de concentração na Polónia. Para perceber o que se passou. Para saber o que é ter, verdadeiramente, fome, sede e frio. E saudade! Para saber o que é estar doente e não ter direito nem a assistência médica nem a medicamentos. Para sentir os maus odores. Para sentir a dor da separação, do cativeiro e da tortura. Para sentir o desespero e o medo. Para se lembrar que, mais do que nunca, se torna necessário combater o antissemitismo, o racismo e quaisquer outras formas de intolerância que possam levar à violência. Para não seguir discursos de extremistas que apenas conduzirão, mais tarde ou mais cedo, à destruição da democracia e da paz.

Para isso, e na impossibilidade de viajar, é preciso ler. Os livros dedicados ao tema do Holocausto levam-nos a um passado recente de terror, de barbárie e desumanidade. Lendo-os, temos a obrigação de aprender e impedir que a História se repita.

Os livros e filmes que abordam o tema do Holocausto são muitos e têm vindo a proliferar. Todos chocantes. Todos emocionantes. Todos capazes de levar à reflexão. Todos bons exemplos daquilo que não se deve repetir. Nunca mais!

De entre tantos, saliento e aconselho quatro autores que têm escrito recorrentemente sobre o Holocausto:

Primo Levi participou na Resistência, foi preso e internado no campo de concentração de Auschwitz. Notabilizou-se pela autoria de vários livros sobre a experiência naqueles campos, uma experiência que o marcou profundamente. De acordo com as suas próprias palavras, o seu símbolo “é a tatuagem que até hoje trago no braço: o meu nome de quando não tinha nome, o número 174517. Marcou-me, mas não me tirou o desejo de viver. Aumentou-o, porque conferiu uma finalidade à minha vida, a de dar testemunho, para que nada semelhante alguma vez volte a acontecer. É esta a finalidade que têm os meus livros.»

Entre os seus títulos encontram-se Se isto é um homem, Assim foi Auschwitz, escrito com Leonardo De Benedetti, Se Não Agora, Quando?, Os Que Sucumbem e os Que Se Salvam.

Morris Gleitzman (o seu site pode ser consultado em https://www.morrisgleitzman.com/) é um autor com vários livros cujo tema é o Holocausto. Um dia, Em breve, Depois, A seguir, Talvez são cinco dos títulos publicados e dirigidos a um público juvenil para que entenda os horrores da guerra.

João Pinto Coelho, um autor português, e um dos vencedores do prémio Leya, também se tem dedicado ao tema do Holocausto através de uma visão original e criativa. O seu último livro Um tempo a fingir, foi publicado recentemente e vem na sequência dos anteriores Perguntem a Sarah Gross e Os loucos da rua Mazur.

Ilse Losa nasceu na Alemanha. Por ser judia, viu-se forçada a sair do seu país pelo que se refugiou em Portugal, onde casou, adquirindo a nacionalidade portuguesa.

O mundo em que vivi, Rio sem ponte, Sob céus estranhos, e alguns contos integrados em Caminhos sem destino são as obras publicadas que retratam o Holocausto.

Para concluir, e como é de pequenino que se aprende, destaco o meu livro de eleição, dirigido a um público infantil, aquele que não me canso de ler aos meus alunos, tenham eles a idade que tiverem, aquele que me embarga a voz e me humedece os olhos sempre que o leio, aquele que deveria estar em destaque em todas as bibliotecas do mundo: Fumo, de Antón Fortes, com belíssimas e intensas ilustrações de Joanna Concejo, da editora OQO.


30 de janeiro de 2021

LER NUMAS QUANTAS PALAVRAS

Vai valer a pena partir aceleradamente, com todos os sentidos alerta, e descobrir o mundo.

Viajar numa galera, mar afora.

Explorar galerias labirínticas por entre rochas e grutas.

Voar pelos ares numa vassoura mágica.

Perder-se por aí, sentir cores e sabores, sons e ritmos.

Ouvir os silêncios. E até alguns gritos.

Descobrir a beleza das histórias. Ler. Reler

A solidão é intolerável. Os livros têm gente dentro, trazem o mundo para dentro de cada um de nós.

Desafio nº 232 – 8 vezes LER


2 de janeiro de 2021

ANO NOVO

Já nada é como era.

Não quero fotos, não quer registos, não quero recordações.

Quero esquecer. Apagar da memória um ano que vai ficar na História. Gravado para não ser esquecido. Mas eu quero esquecer.

Um ano que mal deixou tempo para sentir a primavera, o verão, o outono. E o inverno chegou e tudo continuou. Mas, todos nós mudamos. Já não somos os mesmos. Já não pensamos da mesma maneira. Já não encaramos a vida da mesma forma. A pandemia mudou o mundo, mudou cada um de nós.

Custa lembrar todos os que partiram. Custa lembrar as festas adiadas. Custa ter de fugir ao abraço. 

Custa não ver as pessoas cara a cara. Custa sentir os sorrisos prisioneiros por trás da máscara. Custa estar constantemente a lembrar que há regras para cumprir. Custa sentir que a liberdade está a escapar. E custa não ser capaz de transgredir, arriscar e viver como se nada se passasse. 

Custou enfrentar o Natal. Contra tudo, o Natal chegou. E, com ele, o mesmo brilho das luzes, o mesmo glamour da mesa, os mesmos odores da canela e do açúcar. O mesmo estralejar do óleo a fritar. Os mesmos embrulhos das prendas que, há muito, deixaram de ser surpresa.

Mas, a alegria não é a mesma. São anos de tradições, de festa e de canções. São anos de cumplicidades e de partilhas. Tudo quebrado!

E os cacos vão ser difíceis de apanhar e de colar. Mesmo colados, se for o caso, as cicatrizes vão lá estar. E doem. 

Hoje é ano novo. E parece que é tudo novo mesmo. Por ser diferente. Não há nada do que era habitual. Não há roupa nova, a roupa velha tem primazia. Não há unhas arranjadas. É dia de ir para a cozinha. Não me lembro de ter de cozinhar no Ano Novo. Não há a canja que cada um come à medida que vai chegando. Não há rabanadas nem bilharacos. E a comida vai para a mesa sem exageros. Come-se menos. Não há conversas nem risos partilhados com as irmãs. Mas há um cão que tem de ser levado a passear à rua, deserta. Não há brindes com champagne.  Mas há gavetas arrumadas. Não há abraços nem beijos de Feliz Ano Novo! O ano está a começar mesmo novo, sem tradições. Quanto a feliz…