29 de abril de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO XLV

"O inimigo não é o vírus, o inimigo é o outro. É aquele que transporta o vírus e o transmite a outro. Vamos ter de usar máscara em todas as situações. A máscara vai passar a ser um acessório."
Só tenho a dizer isto: não me conformo. 
A máscara é uma prisão. A máscara é castradora. A máscara transforma o ambiente em algo de surreal, de filme de ficção científica. A máscara provoca-me medo porque me lembra que a situação é perigosa.
Agora que se fala em começar a aliviar o confinamento e a fazer com que a vida comece, aos poucos, a voltar ao normal, a máscara vai ser obrigatória. 
Normal? Com algo que me tapa a boca e o nariz e me impede de respirar livremente? 
Normal? Com algo que me impede de reconhecer as pessoas com quem me cruzo na rua?
Normal? Se não posso conviver sem preocupações, se tenho de estar a contar mentalmente os metros de distância a que tenho de estar dos outros?
Normal? Se nem na praia poderei usufruir da liberdade completa?
Normal? Se não posso abraçar nem beijar?

Hoje é o Dia Mundial da Dança. Dançar para esquecer. Vou. 


26 de abril de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO XLIV

Há 46 anos, comemorava-se o primeiro dia de liberdade em Portugal, após um regime de ditadura que durou 48 anos. E, só aí, me apercebi, efetivamente, que ela existia. Era eu uma criança com 13 anos, sem nada saber do mundo. 
Antes do dia 25 de abril de 1974, vivia no meu pequeno meio, rodeada de irmãs, primas e primos e divertíamo-nos, supúnhamos, livremente. Sem nunca ter ouvido a palavra liberdade. Sem imaginar, sequer, que essa palavra era proibida. Sem sentir que não a tínhamos. 
Na escola não se falava disso, claro! A escola servia o poder reinante. Tudo o que interessava que soubéssemos era memorizado. E, se não fosse naturalmente memorizado, a impiedosa palmatória tratava do assunto. No manual único, aprendíamos o português, a história, a geografia, a matemática e a doutrina cristã. Apontávamos, no mapa, as serras, os rios e os caminhos de ferro. Mas, não nos ensinavam a descobrir, nem a pensar, muito menos a contestar.
Em casa, também não se falava disso, apesar de algumas tentativas. Havia um disco de Zeca Afonso que o meu pai nos proibiu de ouvir. Porquê? Veio uma resposta lacónica. 
Quando umas amigas (deduzi, mais tarde, que a família estaria envolvida, clandestinamente, com o partido comunista) disseram que a professora de Educação Visual era da Pide, não percebi. Em casa, questionei a mãe. Veio uma resposta lacónica.
Quando os meus pais iam votar (em eleições, soube depois, ilusórias) eu questionava em quem tinham votado. Veio uma resposta lacónica. 
As minhas leituras levavam-me a mundos de aventuras e de grandes paixonetas. Divertiam-me e apaixonavam-me, mas não me ensinavam nada da vida real e, muito menos, de política. 
Vivíamos encarcerados numa sociedade onde prevaleciam o obscurantismo, o preconceito e a falta de direitos. Onde o medo existia porque o perigo de uma denúncia espreitava em todas as esquinas. Mas eu só tinha 13 anos e o meu mundinho era dourado! E não fazia a mais pálida ideia que alguém lutava e sofria para que a liberdade chegasse e fizesse o país recuperar os sorrisos. 
Portanto, o meu pequeno mundo de ignorância continuou até à revolução. 
Não posso esquecer a sensação que foi ver, na televisão, a libertação dos presos políticos e, pela primeira vez, ouvir testemunhos das atrocidades que lhes fizeram nas prisões. 
Não posso esquecer o ambiente eletrizante vivido no Liceu de S. João da Madeira que eu frequentava nessa altura. E houve professores que foram mesmo destituídos por estarem ligados ao regime fascista e que viram as suas vidas viradas do avesso de um dia para o outro. 
O dia 26 de abril de 1974 foi um dia diferente. Respirava-se outro ar. Havia uma sensação de alívio e de libertação. Havia gritos de alegria. Até no vocabulário. Lembro-me de uma amiga dizer o que, na altura, era um palavrão impensável de se dizer em voz alta: Agora já podemos dizer merda! 
Bonitas eram as palavras novas que começaram a entrar no léxico de quem, como eu, inocente e ignorante das coisas do mundo, as desconhecia. Palavras cheias de sonoridades, de significados, de poesia. Liberdade. Democracia. Direitos. Fim da guerra colonial. 
E, só no ano seguinte, na escola, comecei as leituras que me fizeram abrir os olhos e a mente. Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes, e Constantino, guardador de vacas e de sonhos, de Alves Redol, foram os primeiros livros que me fizeram mergulhar no neorrealismo português e refletir sobre as desigualdades sociais. Até esse momento, nunca me tinha questionado por que motivo as minhas colegas da escola primária não tinham continuado os estudos comigo, sobretudo a melhor aluna da turma, que fora trabalhar numa fábrica. Até esse momento, não me questionava sobre nada. Mas, a liberdade recém-conquistada permitiu chegar às estantes os livros proibidos e esses permitiram-nos aprender a refletir e a questionar, a criticar e a contestar. Os discos proibidos também puderam ser colocados na aparelhagem e ouvidos. E as canções de Zeca Afonso, Sérgio Godinho, Manuel Freire, Adriano Correia de Oliveira, Pedro Barroso, Francisco Fanhais e Ary dos Santos foram cantadas em alta voz. Finalmente, tinha percebido que "fazia falta avisar a malta". 
A Revolução tinha chegado. O país começara a mudar. E, finalmente, os sonhos em incubação começaram a tomar forma. O amanhã já não era longe demais.

25 de abril de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO XLIII

Hoje, a Liberdade está de parabéns. Sim, já é uma senhora crescida, faz 46 anos.

Depois de tanta polémica, devido à comemoração do seu aniversário na Assembleia da República, tudo passou e passou muito bem. Dentro dos limites do confinamento, é certo, mas a festa não ficou por fazer.
A festa não se fez no exterior da AR com uma imensa multidão. Fez-se no interior com algumas pessoas que não deixaram esquecer esta data tão importante para Portugal. E o discurso do Presidente da República foi bem claro e assertivo: "Deixar de evocar o 25 de abril, num tempo em que ele está, porventura, mais à prova nestes 46 anos, seria absurdo cívico. E não o fazer nesta casa da democracia com a presença de todos os principais poderes de estado e para além deles seria um mau sinal um péssimo sinal de falta de unidade no essencial.” 
A festa não se fez nas Câmaras Municipais. Fez-se nas redes sociais. 
A festa não se fez nas ruas. Fez-se nas varandas e janelas. Fez-se entre famílias com os meios tecnológicos ao dispor.
Não fazer a festa seria um absurdo. E, para absurdo, já basta o que basta. Já basta a situação de clausura monástica em que vivemos porque um ser miserável e minúsculo a isso nos obrigou. 
A vida atual tornou-se um nó apertado, parece um nó cego impossível de desatar. Mas, há sempre uma esperança. Haja paciência e alguma perícia. Depois de desatado, concluiremos que, afinal, o nó tem duas pontas e essas ninguém as consegue prender. Tal como essas pontas, também somos livres. Com ou sem vírus!
A liberdade foi uma conquista. E isso não pode ser ignorado. Nunca!

24 de abril de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO XLII

Em tempo de confinamento e de lojas fechadas, as livrarias e editoras estão a passar um mau bocado. Apesar da possibilidade de se fazerem encomendas online e de os livros chegarem a casa sem que seja preciso sair, parece que o negócio da cultura vai mal. Então, são várias as atividades de promoção da leitura e dos livros nas redes sociais. Desde grandes promoções a passatempos e desafios, tudo é uma forma de não deixar esquecer os livros.
"Eu Leio em Casa" e a The Book Company inauguraram uma série de passatempos com oferta de um livro por dia. Em cada dia da semana, foi lançado um desafio a apelar à criatividade dos participantes, a partir de um livro. 
Hoje, o desafio para se ganhar um exemplar do livro Febre, de Nick Louth, cada participante teria de enviar uma resposta à pergunta: «Que livro me tem ajudado a lidar com este período de isolamento?».  
Decidi participar, tendo escolhido o livro Jalan Jalan, uma leitura do mundo, de Afonso Cruz.
E porquê?

Jalan Jalan é um livro onde se volta, se passeia, se saboreiam as palavras. 
Em tempos de confinamento, Afonso Cruz leva-nos a andar na rua, a viajar não só pelo mundo, mas, também, por outros livros e autores. E pela existência humana que tanto tem de fantástica como de contraditória. 
Em tempos de confinamento, Afonso Cruz faz-nos olhar o mundo com outros olhos e sentir como são importantes as pequenas grandes coisas da vida.

É ABRIL, TEMPO DE CRAVOS E DE LIBERDADE

ilustração de Helena Veloso, in Do cinzento ao azul celeste

É abril e lá fora cheira a cravos. Dos que vivem nos canteiros e que, este ano, não serão cortados para servirem de estandarte nas comemorações da liberdade.

É abril e cá dentro cheira a cravos. Dos que vivem nos livros e, misturados com as palavras que ilustram, gritam liberdade.

Esse grito, este ano, não se ouvirá nas ruas, nas praças, só nos livros que lermos.

É abril, um mês que guarda dentro de si dois dias especiais que convidam à leitura. O dia Internacional do Livro Infantil e o Dia Mundial do Livro, respetivamente dia 2 e dia 23.

Urge, então, promover a leitura, falar de livros, dá-los a conhecer e a ler. E, sendo abril o mês do livro e o mês da liberdade, convoco, neste meu humilde texto, a boa literatura sobre este tema. Falar de literatura é partilhá-la e dar forma a tudo o que os livros nos fazem sentir e pensar.

Muitos escritores escolheram "Abril" como tema das suas estórias, um mês cheio de luz e de cores, um mês cheio de significados. E, no contexto da literatura para crianças e jovens em Portugal, são muitas as obras cujo tema é a Revolução de Abril de 1974. As primeiras edições surgem no final da década de setenta e, desde então, continuam a ser reinventadas novas estórias. Para que a memória não se apague, nunca.

Então, deixo a minha partilha, contando uma estória com os títulos que tanto me encantam e que moram nas minhas estantes, livros onde os cravos se espalham pelas páginas e perfumam as palavras com o seu odor a liberdade.

Romance do 25 de abril

Era uma vez um cravo que nasceu para transformar as armas em jarras coloridas e impedir que delas saíssem balas.

Esta é, então, a história de uma flor. A flor de abril trouxe a magia do luar e todos os anos faz uma viagem à flor do mês. A ornar a lapela do casaco do rapaz da bicicleta azul, não deixa esquecer os heróis, os destemidos capitães de abril que fizeram a revolução das letras e aniquilaram o ladrão de palavras que nos roubou o tesouro mais precioso e foi corrido à vassourinha, num dia de sol. Um dia que libertou dos combates, dos medos e da morte aqueles que se encontravam, lá longe onde o sol castiga mais.

E são muitas as estórias desse dia. 7 x 25 a sete vozes. Tantas estórias da liberdade são contadas neste país que deixou a felicidade entrar e mudou de cor passando do cinzento ao azul celeste.

E só quem viveu plenamente este dia poderá contar esta fábula dos feijões cinzentos com toda a emoção.

25 de abril, quase como um conto de fadas. Sempre.

Chegando a estória ao fim, e em tempo de isolamento social, fica um desafio para ajudar a passar o tempo: descobrir os autores destes títulos, procurar os livros e usufruir de boas leituras. E assim se vão contando os fios que tecem a História.

texto publicado na revista online "A casa do João"

23 de abril de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO XLI

Com o passar dos dias, e tantos já passaram desde que foi declarado o estado de emergência em Portugal, é normal sentir um cansaço, até dos próprios pensamentos e, sobretudo, dos medos e das incertezas. 
O mundo está menos físico e mais virtual. E mais incerto. E mais precário. E não está mais meigo. Parece que as pessoas estão a perder o hábito dos afetos e que o ditado "longe da vista, longe do coração" começa a fazer sentido.  O longe começa a arrefecer as relações. Parece.
Felizmente, há algo dentro de nós que nos chama e nos faz ver uma outra luz, nos dá um alento, uma força que faz empurrar qualquer ideia mais negativa que tanto cansaço traz.

21 de abril de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO XL

Em época de reclusão vale tudo! Até transformar um quarto em ginásio.


Valha-nos a tecnologia (mais uma vez o digo!) que nos permite dar aulas aos alunos, receber aulas dos instrutores do ginásio, fazer compras, descobrir novas plataformas e aplicações, encontrar novas receitas culinárias.

Deste jeito, nem tenho sentido o tempo a passar e, quando me apercebo que as semanas estão a correr a uma velocidade desmesurada e que não consigo fazer tudo o que quero, porque o tempo não chega, assusto-me. O que vale, para acalmar, são as aulas de pilates e de yoga. Abençoado quem as inventou!


20 de abril de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO XXXIX

O 25 de abril aproxima-se e já dividiu o país. Um evento que deveria ser para unir, jamais separar.
Há quem defenda que o mundo, depois desta pandemia, vai mudar e ficar melhor. E que tudo vai ficar bem. Nunca tive essa esperança.
Num momento em que estamos confinados e de liberdade perdida, não é tempo para guerrinhas nem melindres.
Comemorar o evento na Assembleia da República, no meu ponto de vista, não é violar as regras. É uma adaptação, da mesma forma que outros locais de trabalho foram adaptados para cada um exercer a sua profissão. Da mesma forma que as empresas de adaptaram, as escolas se adaptaram, os transportes de adaptaram, os supermercados se adaptaram. A AR também se adaptou para não deixar passar em claro um dia tão importante na História de Portugal. 
E ninguém me venha dizer que proibir os festejos da Páscoa e/ou as romarias aos cemitérios  e permitir fazer uma atividae na AR, com todas as regras de segurança, é uma atitude contraditória e incoerente. Nem sequer é comparável! 
Mas isto é, apenas, uma mera opinião!

19 de abril de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO XXXVIII

Hoje é domingo e está sol. Já perdi a conta aos domingos em casa. Nada a que não esteja habituada, normalmente passo os domingos em casa. Mas parece que, quando não se pode ou não se deve sair, é quando mais apetece. É aquela coisa do fruto proibido.
Hoje saí apenas para dar uma caminhada à volta do quarteirão. Nada que seja proibido ou que seja uma forma de me pôr em perigo ou de pôr alguém em perigo. Mas lá vêm os remorsos. A sensação boa de ter o sol a inundar o rosto, parece um crime! Ainda por cima, passa um carro com um altifalante a vociferar "FIQUE EM CASA"! Pronto! A caminhada só durou 10 minutos.
Então, porque é domingo e mais um dia de recolhimento, vou ser egoísta e esquecer, por umas horas, que o mundo está em guerra contra um ser tão microscópico, mas tão poderoso que os poderosos não o conseguem matar. Nem sabem nada sobre o ele!
Insisto, hoje vou ser egoísta e pensar em mim. E ficar orgulhosa porque os meus textos começam a chegar um bocadinho mais longe.
Desta vez, chegaram à Rádio Tropelias & Companhia, ao programa "Leituras Miúdas", da responsabilidade do escritor João Manuel Ribeiro que, gentilmente, me convidou para o programa de hoje que pode ser ouvido AQUI.



18 de abril de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO XXXVII


Pela manhã, bem cedo, gosto
Do som das pombas que atropelam o telhado
Do som do elevador que anuncia vida
Do sol que desperta e espreita na janela ainda fechada
Da chuva que bate na vidraça
Do despertador que eu desperto
Do cheiro das torradas
Do sabor amargo do café

Pela manhã, que já vai longa, gosto
Da mulher que, à janela, sacode o pó
Do pai que, na varanda, embala o filho
Da criança que, no baloiço, voa para o futuro
Das aves que riscam o espaço e me espreitam
E eu espreito-as e invejo-as.

Como as aves, quero voar
Mas, talvez seja melhor adiar!...

17 de abril de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO XXXVI

As notícias são animadoras. A percentagem de novos casos Covid-19, hoje, não chega a 1% e a diretora da DGS diz que "vem aí a normalidade possível". A cerca sanitária de Ovar vai ser retirada amanhã. O comércio vai abrir gradualmente. Há empresas a retomar a atividade laboral. Talvez as creches venham a abrir.
No entanto, não convém esquecer que a "normalidade possível" não é toda a gente a correr para a praia pois o mar está a fazer muita falta. A "normalidade possível" não é começarmos todos a sair de casa como se o vírus estivesse morto e enterrado. O isolamento social terá de se manter, isso é "a "normalidade possível".
O que vale é que a chuva veio para ficar e para travar ânsias.

16 de abril de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO XXXV

Troveja. Parece que o ar cinzento e pesado ralha com o maldito vírus que continua a matar. Hoje, levou o escritor chileno Luís Sepúlveda e a literatura sofreu uma pancada.
Chove. E esta chuva pesada não alivia a sensação de frustração pelos tempos que vivemos e para os quais não estamos preparados. Nem estaremos nunca. E as gotas da chuva que escorrem, metáfora das lágrimas que gostaria que escorressem cara abaixo e não consigo que escorram, não aliviam nem lavam a alma.
Aparentemente há paz lá fora, na paisagem vista da minha janela. Mas, será apenas a paz que há de ser. Não existe paz nos corações que saltam de medo na iminência do risco.
Luís Sepúlveda partiu. A sua obra fica. Uma obra onde o autor nos leva a passear pela Patagónia, pelo Chile Austral, em defesa das baleias, pelo cais de Hamburgo (onde amamos gatos que amam gaivotas) e por Munique (onde amamos gatos que fazem amizade com ratos), nos ensina a ler romances de amor e a importância da lentidão.
E, como escreveu Fernando Pessoa, se "A morte é a curva da estrada/morrer é só não ser visto", acredito que este grande escritor e, segundo dizem todos os que o conheceram pessoalmente, um grande ser humano, será encontrado na curva de qualquer estrada, que é como quem diz, de qualquer biblioteca, de qualquer livraria.



15 de abril de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO XXXIV

Agora que o terceiro período começou e, com ele, as aulas, deveria ter recomeçado a rotina, mas não.
Se há coisa que não existe nestes tempos de pandemia e de pandemónio, é rotina.
Aulas por videocoferência, aprendizagem para lidar com a nova plataforma. 
Criação de conteúdos para os alunos trabalharem online, através do Quizizz, formulários Teams, escola virtual, aula digital...
Receção de trabalhos de alunos, pelo Teams, por email, pelo messenger.
Dúvidas a tirar aos alunos pelo Teams, por email, pelo messenger, pelo telemóvel.
Novos recursos didáticos: aprendizagem/formação pelo Zoom, pelo Hangout, pelo Youtube, pelo Google...
Apoio aos colegas/turmas, como professora bibliotecária, pelo blogue, pelo Facebook, pelo Instagram, pelo Padlet..
Catalogação no GIB.
Tenho a cabeça cozida de tanta tecnologia!!!

E, hoje, uma notícia menos boa para a Literatura: morreu o escritor brasileiro Rubem Fonseca, de ataque cardíaco, aos 94 anos, um dos vencedores do Prémio Camões (2003). O último livro dele, publicado em 2018, Carne crua, foi o último livro dele que li. Um livro de contos marcante, desconcertante, onde o autor revela a verdadeira arte de usar as palavras como arma que deixam os sentimentos e as sensações em "carne viva". Um livro cru onde se encontram assassinatos, traições, muita injustiça social. Mas, também por lá andam, de mãos dadas, o amor e a poesia.


14 de abril de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO XXXIII

Vivemos um paradoxo: lutamos contra a crise, passamos dificuldades e, agora que a situação tendia a equilibrar-se e o poder de compra começava a melhorar, de nada nos serve. Acordamos e não podemos sair à rua. Há um mês em casa. Saídas, só para as compras, de longe a longe.

13 de abril de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO XXXII

Ontem, dia de Páscoa, houve confinamento concelhio, não eram permitidas saídas para fora do concelho de residência. É evidente que o tradicional compasso de Páscoa não saiu e as cruzes não entraram nas casas das famílias católicas.
Não obstante, numa terreola de Barcelos, em Martim, alguém decidiu vir para a rua com a cruz para ser beijada. E não faltaram fiéis a fazê-lo, sem qualquer medida de proteção, violando descaradamente as regras de afastamento social. 
E em Vermoim, Vila Nova de Famalicão, um grupo de fiéis fez um lanche pascal numa mesa montada na na rua, para confraternização.
Até onde vai a fé? Até onde vai a estupidez?  Que fiéis são estes, infiéis às regras, ao bom senso, à proteção individual e coletiva?
As pessoas não estão suficientemente alertadas para o contágio? As imagens de sepulturas, por esse mundo fora, não as choca? A fé dá-lhes imunidade? 
Para estas pessoas, só com um pano encharcado nas trombas! A ver se aprendem!

12 de abril de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO XXXI

Dia de Páscoa. Dia de ressurreição e de reflexão. Dia de reunião da família em volta da mesa e dos afetos.
Mas este ano só nos sobra a reflexão. A família não se junta.
E, refletindo, muita mágoa vem ao de cima. Logo de manhã, ouvindo as primeiras notícias, diz o Ministro da Saúde alemão: "Não, esta pandemia não é uma guerra. Não há nações contra nações, ou soldados contra soldados. É um teste à nossa humanidade."
Sim, é um teste à nossa humanidade. Estamos em casa, mas temos mesa cheia. Não faltam as amêndoas nem o pão de ló. A família está, também, recolhida, mas temos a tecnologia que nos aproxima e permite que nos vejamos, que falemos e, até, que mostremos o que comemos ao almoço. E, no meio de tudo isto, saltam as imagens da televisão com tudo o que o mundo tem de distópico para mostrar. 
O Covid-19 mata muita gente, é um facto. O número de mortes provocadas pelo vírus, no mundo, é assustador, é um facto. Mas as imagens da televisão não nos não sossego e mostram outros números assustadores de mortes provocadas por outras doenças e... pela fome! Vejamos aqui.
Teste à nossa humanidade! Que resultados dará?

11 de abril de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO XXX

Sábado de Páscoa. Não foi o sábado de Páscoa habitual.
Não houve as combinações com as irmãs sobre o que cada uma faz para levar para a festa em casa da mãe.
Não houve o bolo ninho de Páscoa decorado com ovos de chocolate e pintainhos.
Não houve sobremesa de colher, nem regueifa da Páscoa.
Não houve ovos de chocolate para oferecer.
Não houve flores nas jarras a lembrar a primavera.

Apenas um cheirinho a Páscoa no pão de ló que espera o momento de ser aberto e saboreado. Não terá o mesmo sabor, pois o dia de amanhã não será passado numa casa cheia de gente, de conversas e de barulho a transbordar alegria. Será um domingo como tantos outros. Com uma diferença: o vírus continua à solta. 

10 de abril de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO XXIX

Para o mundo católico, hoje é dia de abstinência de carne. Fui educada a cumprir esta exigência da Igreja Católica, mas não entendo o conceito. 
Há muito que não o cumpro. Não me faz sentido. Se a ideia é fazer sacrifício, para mim, não comer carne não é sacrifício algum. 
Se vivesse sozinha e tivesse de cozinhar só para mim, seria vegetariana. Com família que não abdica da carne, fico sem opção, pois não há tempo, nem paciência, para fazer dois pratos.
Mas, voltemos ao dia de hoje. Não vou comer carne! Não porque é uma imposição da Igreja. Não porque não tenha carne em casa para cozinhar. Simplesmente porque não me apetece.
A abstinência, hoje, é outra. Essa, sim, um sacrifício. Triste. Dolorosa. Medonha. E, o pior, é que não é de hoje, já dura há um mês. A abstinência dos abraços.



9 de abril de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO XXVIII

Conferência de imprensa, Primeiro-Ministro comunica ao país:

  • 3º período do ensino básico e do 10ºano será à distância.
  • Ensino básico com telescola na RTP Memória a partir do dia 20 de abril.
  • Não haverá provas de aferição nem exames de 9ºano.
  • O calendário de exames do ensino secundário foi adiado.
  • Haverá atividades letivas até 26 de junho.
  • Caso se verifique ser possível, haverá aulas presenciais nas disciplinas de exame de 11º e 12º anos, com todas as medidas de higienização, com uso obrigatório de máscaras por todos.
Moral da história: o Covid-19 é um bandido cobarde que não se mostra e ataca sem dó nem piedade. Quando se cansará?

8 de abril de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO XXVII

O bicho


Na noite de breu, a voar,
O bicho chegou, a pouco e pouco avançou,
De sineta na mão, ao mundo anunciou
Que é preciso mudar
Que é preciso respeitar

À roda do mundo voou
O medo espalhou
E, ufano, questionou:
Quem me ousa enfrentar?
Quem me quer atacar?
De quem são os corpos onde me alimento?
Quem mantém a esperança que não acalento?

E à roda do mundo continuou a voar
E no centro do mundo o medo a aumentar

Mas o homem do leme enfrentou-o e disse:
«Aqui ao leme, não me deixo abater,
O meu povo não vais vencer.

E o homem do leme cumpriu e disse:
Povo que sabes combater
À rua não vais sair
Vais cortar as asas e no ninho ficar
Vais persistir
Vais resistir
E no futuro acreditar.

O buraco é fundo
Mas a luz na noite surgirá
Os nossos medos se calarão
E cantaremos em união.

7 de abril de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO XXVI

Partiste, pai, faz hoje, 15 anos.
Hoje não te pude visitar nem deixar uma flor. Fecharam a tua morada e os afetos não podem entrar.
Não faz mal. Ainda ninguém conseguiu fechar as portas das memórias.

6 de abril de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO XXV

"Num só dia, ao meio-dia, o mundo em suspenso com a Covid-19" - notícia no jornal Público de 2 de abril.
Parece, segundo as notícias, que os canais de Veneza estão limpos e deram lugar a vida animal que não existia.
Hoje, uma amiga publicou no Facebook que uma árvore, frente a sua casa, não dava flor há 10 anos. Ressuscitou e está a dar uma flor linda.
Notícia na televisão, hoje de manhã: os níveis de poluição estão a baixar.
Terá sido este o objetivo do vírus? Provocar um novo olhar sobre a Natureza para a respeitar? Obrigar o mundo a parar para pensar e respirar? Fazer sentir o tempo para todos terem tempo para tudo que não tinham tempo? 

5 de abril de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO XXIV

Não sei pintar a canção da chuva que veio tocar na janela. 
Não sei pintar o cinzento do dia que, hoje, deveria ter as cores das flores. 
Não sei pintar o choro dos que perderam alguém. 
Nem, tampouco, sei pintar tudo o que me vai cá dentro.

3 de abril de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO XXII

Vivemos lado a lado com o medo. Mas, há alturas em que é preciso enfrentá-lo e sair. Para desentorpecer as pernas, para apanhar sol e respirar a primavera.
Hoje, saí com a minha filha para uma caminhada higiénica e de apoio à minha mãe (com a devida distância!) que está sozinha. Sem parar em lado nenhum, embora as padarias abertas convidassem a entrar para tomar um café, comprar um pãozinho ou um bolinho, sem ficar lado a lado com as poucas pessoas que também andavam na rua. Se vinha alguém, no mesmo passeio, mas em sentido contrário, a tendência era, imediatamente, atravessar a rua e mudar para o outro passeio. Mais à frente, a cena repetia-se. O caminho, agora, faz-se em ziguezague.
A caminhada foi acompanhada, apenas, de silêncio. O silêncio das árvores, o silêncio das flores, o silêncio do voo dos pássaros. Um silêncio estridentemente cortado por uma carrinha com um enorme cartaz no tejadilho donde saiu uma voz: FIQUE EM CASA!
E pronto! Lá veio o medo de novo. E o remorso por andar na rua, ao sol. Ficou a sensação de que o o bicho anda no ar e, a qualquer momento nos vai pegar!
- Se o bicho te pega vais ser culpada por andares na rua em vez de estares a mofar em casa! - parece que é o que a voz quer dizer!

Nunca desejei tanto, como agora, ser ave para andar de um lado ao outro num voo despreocupado.
Mas valeu a pena a saída. Por momentos, senti que enfrentava o papão, sem medos. E um bocadinho da mãe veio para minha casa.

2 de abril de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO XXI

"Vai ficar tudo bem." Esta é a frase mais partilhada, o conceito mais desejado, desde que o país está em estado de emergência, hoje alargado por mais 15 dias. 
Vai ficar tudo bem? 
Quando? Como? Onde? Com quem?
As perguntas não param de atacar o cérebro.
Vai ficar tudo bem? 
Se está tudo parado, tudo fechado, tudo à espera.
Se as dúvidas são muitas e atormentam os espírito.
Se o Governo pede às pessoas para continuarem em casa e se as empresas estão a entrar em lay off.
Se ainda não se vê "a luz ao fundo", diz o Primeiro Ministro.
Mas vai ficar tudo bem!

1 de abril de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO XX

De facto, as coincidências existem.
Hoje, passei o dia a pensar no livro de Alexandre Dumas, O conde de Monte Cristo, e a dizer à minha filha que deveríamos rever o filme realizado a partir do livro.
Tudo porque já vamos na terceira semana de isolamento social e todo o mês de abril, que começa hoje, vai ser passado assim, já é certo.
E isto leva a pensar. Mais um mês inteiro em casa? 
De repente, uma pessoa cai na realidade e apercebe-se que só tem de estar no conforto de sua casa e até sai para fazer compras para que a comida não falte. E olha para outros exemplos de verdadeiro isolamento, de prisão, de perigo intenso, de medo imenso e apercebe-se que, apesar da grande ameaça que ronda o exterior, não é o fim do mundo.
Tudo vai ficar bem? Não sei. O futuro o dirá. E, tratando-se do mundo real, não dá para ir ao fim do livro (como adoro fazer!) para vislumbrar um possível fim.
Voltando às coincidências. Depois de ter passado o dia a pensar nestes assuntos (fico assim, mais inquieta quando saio para fazer algumas compras, o que aconteceu, hoje), eis que o jornalista Rodrigo Guedes de Carvalho termina o seu noticiário precisamente a lembrar casos reais de luta pela sobrevivência em que durante dias e dias, pessoas presas em grutas e/ou minas, tiveram de aguentar e ir buscar uma força que não sabiam que tinham. São casos reais, não é o caso da ficção no livro O conde de Monte Cristo.

Faço minhas as palavras do jornalista: "Ninguém nos preparou para isto!".