27 de maio de 2012

PAIXÃO


De dia, viam-se pouco mas isso não importava. Ela esperava ansiosamente que a noite chegasse e o encontro era mais intenso. Os seus afazeres profissionais não lhe permitiam que se cruzassem mas, assim que entrava em casa, depois de um dia de trabalho cumprido (e comprido!), logo ela se lhe dirigia, numa enorme vontade de lhe tocar, de o afagar, de o possuir até se cansar. E pensar que, há bem pouco tempo, detestava computadores! Quem diria...!

Mais um desafio para o blogue 77palavras

20 de maio de 2012

AMANHÃ...

Microconto lido na Rádio Sim; OUVIR AQUI
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ilustração de Shiori Matsumoto


Amanhã não haverá mais lágrimas nem acusações.
Amanhã só haverá ausências pois contigo partirão afetos e ternuras.
Não haverá músicas nem danças, não haverá beijos nem festanças.
Haverá silêncios e tudo o que foi bom não voltará.
Mais não! Chega! Não pretendo pedir o impossível. Quero secar
lágrimas. De tanto lembrar, quero esquecer o que foi vivido!
Nem me vou preocupar em apanhar os cacos. Quero apagar
acusações para não lamentar nem odiar. Apenas continuar e… perdoar.
 desafio nº5 da Margarida Fonseca Santos, no blogue 77palavras

15 de maio de 2012

CONTADOR DE ESTÓRIAS

ilustração de Tilly Strauss


Sou um bule rachado, sou! Mas não diminuído nem inútil. Como já não tenho o prazer de receber a água fervente, que a minha finíssima porcelana deixa verter, tornei-me um contador de estórias.

Sempre que novas folhas de chá mergulhavam em mim e se abriam em flor, lá vinha uma estória. Tantas ouvi. Da China, Ceilão, Índia, Japão. Ri, chorei, arrepiei-me, comovi-me. Todas cá ficaram. Agora, encanto com elas os visitantes deste museu, o meu novo lar.


microconto publicado no blogue 77palavras

5 de maio de 2012

NAMORO


ilustração de Kiko Rodriguez

Salto de página em página e todas percorro, sem pressa nem nervosismos. Lentamente. Saboreio o percurso, paro, avanço, recuo.
Deito-me com as palavras, observo-as, acaricio-as e saboreio cada uma delas.
Chego ao fim, à última página, aquela que menos tempo me vai deixar ficar para dela usufruir. Dói-me não poder continuar entre elas mas sei que tenho outras que me esperam ansiosamente.
Não sou um marcador fiel: namoro, com volúpia, todas as páginas dos livros que marco.




1 de maio de 2012

MISÉRIA A PASSOS LARGOS


A cidade onde vivo é considerada uma das cidades do país onde há melhor qualidade de vida. Sempre o senti. Vivo aqui há vinte e seis anos e sempre me senti bem. Eu e todos que cá vivem. Tudo é pacífico, o trânsito não provoca engarrafamentos de perder a paciência, não falta nada. Não faltava.
Nunca pensei, até hoje, que iria testemunhar uma situação tão oposta. Mesmo frente ao meu prédio, mesmo no contentor onde despejo diariamente o meu lixo doméstico. Hoje, não me atrevi a deixar ali o saco. Faltou-me a coragem!
Não consegui despejar o meu lixo que um ser humano iria escabulhar para recuperar algo que a minha abundância se atrevera a desperdiçar da mesma forma que já escabulhava os despojos e desperdícios de outros. Operação demorada, a dele!
Isto passou-se hoje, ao início da noite. Num dia em que se festejou (festejou?) o Dia do Trabalhador. Este homem gostaria, provavelmente, de ser um trabalhador e de ter trabalhado neste 1º de maio.
Isto passou-se hoje, no final de um dia em que a população portuguesa se atropelou, se esgadanhou, se digladiou numa cadeia de hipermercados para comprar indiscriminadamente, sem critério ou necessidade, e gastou mais de 100€ para poupar 50%. E gastou tempo e paciência e tolerância e, certamente, comprou produtos que nunca vai gastar. Um dia mais tarde, é quase certo, estes produtos irão parar ao contentor onde este homem irá de novo vasculhar para encontrar algo que encha a sua panela.
Este homem viveu o feriado do trabalhador mas não o festejou.
Este homem não teve 100€ para ir a correr gastá-lo no hipermercado da louca promoção.
Este homem não teve comida no prato.
Este homem festeja a vida com os restos que encontra no contentor do lixo.
Está a ficar assim a cidade onde vivo? Se é uma das cidades com melhor qualidade de vida do país, como anda o país?
Tenho vergonha! Se os olhos não veem, o coração não sente. Os meus olhos viram. Doeu. Dói.