Se me pedissem uma única palavra para caracterizar Nunca me deixes, usaria o adjetivo estranho, até ao meio do livro. É estranho o leitor não saber o que são os dadores e os ajudantes. É estranha a educação dada no colégio. É estranho que as personagens tenham toda a liberdade sexual mas não possam ter filhos. É estranho que o colégio tenha um cuidado redobrado com a alimentação das crianças. É estranho o título que não condiz com o conteúdo. Ao longo da leitura, e ligando algumas pontas, fui fazendo as minhas conjeturas sobre o que seriam os ajudantes e os dadores. Acertei. A narradora autodiegética acaba por confirmá-lo. Mas, o papel desempenhado pelas personagens começa a ficar claro e uma ideia surge. Não, não é possível! E é então que se dá o nó na cabeça. O tema é demasiado polémico, não consensual, quase tabu, para ser abordado assim, de forma tão natural. Depois do meio do livro, substituo o adjetivo estranho pelo adjetivo chocante para caracterizar o livro. Foi um choque para mim quando as minhas suspeitas foram confirmadas. Afinal, o título tem toda a razão de ser e está ligado a uma atitude da narradora, enquanto criança, também ela chocante depois de ouvida a explicação.
A palavra-chave foi escrita apenas duas vezes em todo o livro. Como se o assunto não fosse importante. Como se fosse muito natural. E é esta naturalidade com que o tema é abordado que faz abanar consciências (algumas, mais frágeis, poderão, mesmo, ficar abalroadas!!!), refletir (muito) e concluir que, afinal, a palavra certa para caracterizar o livro de Ishiguro é perturbador!
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