13 de maio de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO LII

Há dois meses em casa em teletrabalho. Pensei que teria todo o tempo do mundo para ler, pelo que construí um muro com livros para serem lidos durante o confinamento. Ao fim deste tempo todo, o muro já deveria estar destruído. Ingenuidade!
Se, por um lado, o trabalho online é mais exigente e requer muito mais tempo (até porque é uma altura para muita aprendizagem), por outro, tanto tempo com as tecnologias acaba por dispersar a atenção e a concentração está a fugir a sete pés!
No entanto, acabei de ler um que, há muito, esperava a sua leitura: A minha verdadeira história, do escritor espanhol Juan José Millás.
"Escrevo porque o meu pai lia. Vejam-me na sala da casa de então, os móveis escuros, escuro eu também atrás do cadeirão. Sou o miúdo a quem a mãe diz: não grites, que o papá está a ler; não corras pelo corredor, que o papá está a ler; baixa a televisão, que o papá está a ler... O papá está a ler. O papá não faz outra coisa senão ler."
Este é o primeiro parágrafo de A minha verdadeira história, um romance que se lê de um fôlego, por ser muito pequeno e pela força da narrativa que nos impele a chegar ao fim.

Um adolescente de 12 anos quer ser escritor porque o pai é um leitor que lê ininterruptamente. Só assim, o pai dará por ele, quando o ler, porque, na vida real rejeita-o, nem sabe que ele existe. A mãe contribui para isso, pois está constantemente a mandá-lo calar e a estar quieto porque o pai está a ler.
Este adolescente que se quer suicidar, precisamente porque o pai o ignora, atira um berlinde de vidro do alto de uma ponte (onde se deslocou várias vezes para se suicidar) o qual bate num carro, onde viaja uma família de quatro pessoas, provocando a morte de três elementos desta família (o casal e o filho).
Descobrindo, na estante do pai, os livros O idiota e Crime e castigo, ambos de Fiódor Dostoiévski, logo se imagina o protagonista destes livros e, assim, desenvolve a sua verdadeira história, mas sem nunca ter lido livro algum. No seu ponto de vista, ninguém é mais idiota do que ele e vive obcecado com o "crime" que cometeu, passando a vida à espera do castigo. Tão obcecado pela culpa, que não descansa enquanto não trava conhecimento com a única pessoa que sobreviveu, uma menina da sua idade, com uma prótese numa perna e de cara desfigurada.

“E aqui está a minha verdadeira história. Graças a ela descobri que o meu pai me ama desde que me vê como um filho de ficção, precisamente ao contrário da minha mãe, que sempre sonhou com um filho real.”

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