Escreveu Raul Brandão:
“Em todas as almas, como em todas as casas, além da fachada, há um interior
escondido.”
A Casa da Criatividade
abriu as suas portas, neste domingo 11 de junho, para o provar.
Pequenos talentos
soltaram toda a sua energia e descontração para dar uma grande lição aos
adultos. E, de facto, só as crianças, com toda a sua naturalidade e
espontaneidade conseguem mostrar que a vida deveria ser “olho por olho, dentro
por dentro”.
“O homem partido” é
mais do que uma peça de teatro interpretada por crianças. É um convite (que
poderia ser convocatória!) a que cada um seja “bicho do mato, ou extrovertido
ou os dois em diferentes tempos”, porque o mundo irá, certamente,
identificar-se com cada um, segundo as palavras do poeta sanjoanense Fábio
Silva, que colaborou com um texto poético seu, incluído no texto dramático.
“O homem partido” é um
olhar profundo sobre as pessoas, é uma entrada triunfal no mais fundo de cada um,
é uma saída terramoto que tremeu consciências.
Enquanto espetadora, senti-me fortemente abalada pelo impacto. Mas, ao contrário do esperado em
situações de catástrofes naturais, não quis fugir em busca de proteção. Quis
ficar ali, a absorver cada palavra dita, cada momento vivido e sentido pelos
pequenos-grandes atores que tão bem olharam por dentro a sociedade em que
vivem, uma sociedade cheia de estereótipos, de preconceitos, de olhares
cruzados, críticos, mordazes, mesquinhos.
O homem partido não
é aquele que não tem um braço ou uma perna. O homem partido é aquele que vive
pela metade.
Porque o ciúme, a
inveja, a maledicência, a falsidade e o pessimismo existem.
Porque há gente
cinzenta que não vê o colorido do vizinho.
Porque há gente que só
olha para si e não vê quem se senta ao pé de si, numa mesa de café ou em
qualquer outro lugar público.
Porque há gente que se
acomoda e não se levanta para ajudar aquele que caiu ao seu lado.
Porque há gente que
não acredita.
Mas, também, porque há
gente diferente (diferente?!) que só quer uma palavra amiga, nem que para isso
tenha de recorrer a uma peúga abandonada e transformá-la em fantoche.
Porque há gente
curiosa que só quer respostas que a sosseguem.
Porque há gente que,
aparentemente, nada tem e, afinal, tem tanto para dar.
Porque há gente.
E porque há gente, o preconceito, existe, é um facto.
E porque há gente, o
preconceito deve ser combatido, destruído e abolido.
E foi contra o
preconceito que os Ecos Urbanos lutaram, neste projeto nascido do zero, com
palavras escritas pelo próprio grupo “Oficina de
artistas”, com uma interpretação fantástica e uma magnífica encenação de
Mariana Amorim e Mafalda Tavares, e deram resposta ao repto “Olhem para
estranhos. Olhar de ver com curiosidade e de lhes descobrir os traços”. Um
projeto de um grupo que acredita em cada um, que tem paixão pelo ser humano e
que convidou toda a plateia a olhar mais para dentro e menos para fora, a
despir a máscara que deverá ficar circunscrita ao teatro, não à vida diária.
E a mensagem passou,
tiro certeiro disparado ao coração, através das palavras do brasileiro Chico Xavier:
“A gente pode morar
numa casa mais ou menos, numa rua mais ou menos, numa cidade mais ou menos, e
até ter um governo mais ou menos. A gente pode dormir numa cama mais ou menos,
comer um feijão mais ou menos, ter um transporte mais ou menos, e até ser
obrigado a acreditar mais ou menos no futuro. A gente pode olhar em volta e
sentir que tudo está mais ou menos...
TUDO BEM!
O que a gente não pode
mesmo, nunca, de jeito nenhum... é amar mais ou menos, sonhar mais ou menos,
ser amigo mais ou menos, namorar mais ou menos, ter fé mais ou menos, e
acreditar mais ou menos.
Senão a gente corre o
risco de se tornar uma pessoa mais ou menos.”
Parabéns, “Oficina de
artistas” dos Ecos Urbanos, por terem feito eco para não deixarem os adultos serem
pessoas mais ou menos. Só pessoas por inteiro fazem a mudança.
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