12 de junho de 2017

SOBRE “O HOMEM PARTIDO”


Escreveu Raul Brandão: “Em todas as almas, como em todas as casas, além da fachada, há um interior escondido.”
A Casa da Criatividade abriu as suas portas, neste domingo 11 de junho, para o provar.
Pequenos talentos soltaram toda a sua energia e descontração para dar uma grande lição aos adultos. E, de facto, só as crianças, com toda a sua naturalidade e espontaneidade conseguem mostrar que a vida deveria ser “olho por olho, dentro por dentro”.
“O homem partido” é mais do que uma peça de teatro interpretada por crianças. É um convite (que poderia ser convocatória!) a que cada um seja “bicho do mato, ou extrovertido ou os dois em diferentes tempos”, porque o mundo irá, certamente, identificar-se com cada um, segundo as palavras do poeta sanjoanense Fábio Silva, que colaborou com um texto poético seu, incluído no texto dramático.
“O homem partido” é um olhar profundo sobre as pessoas, é uma entrada triunfal no mais fundo de cada um, é uma saída terramoto que tremeu consciências.
Enquanto espetadora, senti-me fortemente abalada pelo impacto. Mas, ao contrário do esperado em situações de catástrofes naturais, não quis fugir em busca de proteção. Quis ficar ali, a absorver cada palavra dita, cada momento vivido e sentido pelos pequenos-grandes atores que tão bem olharam por dentro a sociedade em que vivem, uma sociedade cheia de estereótipos, de preconceitos, de olhares cruzados, críticos, mordazes, mesquinhos.
O homem partido não é aquele que não tem um braço ou uma perna. O homem partido é aquele que vive pela metade.
Porque o ciúme, a inveja, a maledicência, a falsidade e o pessimismo existem.
Porque há gente cinzenta que não vê o colorido do vizinho.
Porque há gente que só olha para si e não vê quem se senta ao pé de si, numa mesa de café ou em qualquer outro lugar público.
Porque há gente que se acomoda e não se levanta para ajudar aquele que caiu ao seu lado.
Porque há gente que não acredita.
Mas, também, porque há gente diferente (diferente?!) que só quer uma palavra amiga, nem que para isso tenha de recorrer a uma peúga abandonada e transformá-la em fantoche.
Porque há gente curiosa que só quer respostas que a sosseguem.
Porque há gente que, aparentemente, nada tem e, afinal, tem tanto para dar.
Porque há gente.
E porque há gente, o preconceito, existe, é um facto.
E porque há gente, o preconceito deve ser combatido, destruído e abolido.

E foi contra o preconceito que os Ecos Urbanos lutaram, neste projeto nascido do zero, com palavras escritas pelo próprio grupo “Oficina de artistas”, com uma interpretação fantástica e uma magnífica encenação de Mariana Amorim e Mafalda Tavares, e deram resposta ao repto “Olhem para estranhos. Olhar de ver com curiosidade e de lhes descobrir os traços”. Um projeto de um grupo que acredita em cada um, que tem paixão pelo ser humano e que convidou toda a plateia a olhar mais para dentro e menos para fora, a despir a máscara que deverá ficar circunscrita ao teatro, não à vida diária.
E a mensagem passou, tiro certeiro disparado ao coração, através das palavras do brasileiro Chico Xavier:
“A gente pode morar numa casa mais ou menos, numa rua mais ou menos, numa cidade mais ou menos, e até ter um governo mais ou menos. A gente pode dormir numa cama mais ou menos, comer um feijão mais ou menos, ter um transporte mais ou menos, e até ser obrigado a acreditar mais ou menos no futuro. A gente pode olhar em volta e sentir que tudo está mais ou menos...
 TUDO BEM!
O que a gente não pode mesmo, nunca, de jeito nenhum... é amar mais ou menos, sonhar mais ou menos, ser amigo mais ou menos, namorar mais ou menos, ter fé mais ou menos, e acreditar mais ou menos. 
Senão a gente corre o risco de se tornar uma pessoa mais ou menos.”

Parabéns, “Oficina de artistas” dos Ecos Urbanos, por terem feito eco para não deixarem os adultos serem pessoas mais ou menos. Só pessoas por inteiro fazem a mudança.

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