11 de agosto de 2021

MOMENTO

Chegam sem dar nas vistas.

Vestem T-shirts e bermudas que despem deixando as boxers à vista de olhares indiscretos. Branco imaculado as boxers de um, alto, corpo atlético. Às riscas coloridas, as boxers do outro, baixo, de barriga proeminente. De idade indecifrável, entre 60 e 70 qualquer número lhes ficará bem.

Do saco que um deles transporta, tiram duas pequenas toalhas (tamanho toalha de rosto). Com gestos simultâneos, enrolam-nas à volta da cinta e deixam cair as boxers na areia, rapidamente trocadas por calções de banho. Cor-de-rosa, os calções de um. Vermelho, os calções do outro.

Dirigem-se ao mar e mergulham em simultâneo. Um decide enfrentar o frio da água, nada para longe e desaparece. O outro regressa à praia. Mantém-se ao alto, pés na água, alerta. Perscruta o horizonte numa espera inquieta.

Eis que um sorriso se instala no rosto. Ao longe, uma cabeça espreita da água e fortes braçadas, num crawl perfeito, devolvem o atleta ao areal.

Não decorreu nem meia hora. Regressam ao local da roupa abandonada, enrolam as toalhas à volta da cinta, deixam cair os calções de banho na areia.  Cor-de-rosa, os calções de um. Vermelho, os calções do outro. Vestem as boxers. Branco imaculado as boxers de um. Às riscas coloridas, as boxers do outro. Vestem as bermudas. Vão ao mar tirar a areia dos calções de banho que, espremidos, são embrulhados nas toalhas.

Partem para donde vieram. Uma passagem pela praia quase etérea. Poucas palavras trocam, os olhares são mais eloquentes.

O amor não precisa de palavras. Apenas de sintonia.


12 de junho de 2021

TELHADOS

Da janela, Maria vê telhados. O que esconderão?

Uns observam a noiva numa felicidade ansiosa. Outros ouvem o choro do recém-nascido. Alguns testemunham o embalo da leitura entre mãe e filha, antes do beijo de boa noite. Outros enternecem-se com o casal de velhinhos que, de mãos dadas, trocam memórias.

Também ela vive sob um telhado. O seu encobre segredos. E se ele os conta? Envergonhada, envolve-se num xaile negro para esconder as nódoas ainda mais negras.

Desafio nº 244 – imagem de telhados


10 de junho de 2021

DIA DE PORTUGAL, DIA DE CAMÕES

10 de junho é Dia de Portugal. É dia das Comunidades Portuguesas. É Dia de Camões. Este ano passam 441 anos da morte deste grande poeta que tanto enalteceu a língua portuguesa. Assim, a ele me dirijo, pois ele vive cá em casa, e com ele convivo.

Gostaria de te dizer, caro Luís, que o meu amor por ti foi um amor à primeira vista, mas tal não aconteceu. Foste-me apresentado nas aulas de Português, era eu uma catraia, mas não me foi mostrada a tua genialidade nem a grandiosidade da tua obra. Tu eras o chato que tinha escrito frases complexas cheias de orações para dividir, cheias de conjunções para classificar. Não me mostraram o quanto a tua epopeia é fabulosa, mas fizeram-me descobrir o quanto ela está recheada de “ques” difíceis de classificar. “O fraco rei faz fraca a forte gente”, escreveste tu. E digo eu: o fraco pedagogo faz fraco o forte aluno.

Conheci-te verdadeiramente e, por fim, por ti me apaixonei, mais tarde, mais velha, quando comprei a tua obra completa (a tal onde habitas em destaque nas estantes da minha biblioteca) e nela mergulhei de cabeça (e coração!). E descobri, então, os teus sonetos, as tuas endechas, as tuas redondilhas... E Os Lusíadas! Que obra de génio! 

“Mudam-se os tempos mudam-se as vontades”, lá o disseste, mas o tempo não te desgastou, antes pelo contrário, as tuas frases saíram da tua obra, foram apropriadas pelos falantes atuais e continuam a enriquecer o património linguístico desta “ocidental praia lusitana” que, “cantando e rindo” tão longe chegou e, “se mais mundos houvera, lá chegara”.

Hoje, como professora, quero que os jovens te conheçam e te leiam e te respeitem, te citem e te imitem. Quero que aprendam contigo a amar a língua portuguesa e a valorizar a nossa História, os nossos valores, o nosso património, em suma, a “ditosa pátria minha amada”. Quero que se inspirem em ti e, como tu, lutem contra todos os obstáculos, com ousadia, sem medo de enfrentar os Adamastores desta vida, pois “nos perigos grandes, o temor é muitas vezes maior que o perigo”. Quero que apreciem a leitura, e a arte em geral, tendo em conta que “quem não sabe a arte, não a estima.” Parece utópico, não achas?

“Coisas impossíveis, é melhor esquecê-las que desejá-las.”, escreveste tu.  Não poderia estar mais de acordo contigo. Mas estes meus desejos não são uma irrealidade. É possível fazer acontecer. E, “com engenho e arte”, se vai espalhando a tua obra!

“Enfim, tudo passa/não sabe o Tempo ter firmeza em nada/e a nossa vida escassa/foge tão apressada”. Por isso, antes que o tempo de cada um passe definitivamente, há que agarrar o que nos preenche, o que nos anima, o que nos alimenta. Refiro-me, obviamente, aos livros escritos por aqueles que, como tu, nos deixaram o seu legado e que com “obras valerosas/Se vão da lei da morte libertando”.

Texto publicado na revista online "A casa do João"


2 de maio de 2021

MÃE


É madrigal nas madrugadas

É música e é murmúrio

É melodia e melopeia

 

É mel e é maçã

É marsupial e mariposa

É magia e magistério


É máquina e é machado

É marcha e é maré

É mergulho e é metáfora

 

É molde e é modelo

É magnetismo e magnitude

É menina e é mulher

 

É o mundo num monossílabo

MÃE

1 de maio de 2021

O QUE ACABEI DE LER

Quando decidi ler este livro e o propus como leitura do Clube de Leitura para o mês de abril, pensei tratar-se de um romance onde o regime vegetariano seria um modo de vida e o centro da intriga.

Cedo verifiquei não ser assim. A vegetariana é um grito de libertação. É o retrato de uma sociedade opressora onde as mulheres são calcadas, caladas, vivem sob o domínio masculino.

Um romance que é um murro no estômago pela crueza das descrições, pela violência da luta pelo direito ao próprio corpo.

O primeiro parágrafo atrai logo o leitor pelo efeito-surpresa: o narrador tem uma mulher completamente insignificante, sem qualquer atrativo. Casa com ela apenas porque não tem nada de repulsivo. “Antes de a minha mulher se ter tornado vegetariana, sempre pensei nela como alguém que não tinha nada de especial. Para dizer a verdade, quando nos conhecemos, nem sequer me senti atraído por ela. Altura mediana; cabelo cortado a direito, nem curto nem comprido; pele amarelada, com um aspeto pouco saudável; maçãs do rosto ligeiramente pronunciadas, o seu ar tímido e frágil disse-me tudo o que precisava de saber.” (…) 

Ele não quer um ser pensante, um ser passivo basta-lhe. E esta mulher, aparentemente passiva, aparentemente sem exigências, serve perfeitamente este homem frustrado que não suporta ninguém superior a ele (nem física nem intelectualmente). Encontra emprego “numa empresa cuja pequena dimensão faria com que valorizassem inevitavelmente as minhas competências banais. E, por isso, era natural que me casasse com a mulher mais trivial do mundo. As mulheres bonitas, inteligentes, sensuais, filhas de famílias ricas – essas teriam acabado por perturbar a minha existência tão cuidadosamente ordenada.”

No entanto, a sua existência foi completamente perturbada a partir do momento em que a mulher lhe diz “Tive um sonho”, a frase que desencadeia a luta da vegetariana contra tudo e todos e conduz à vertigem provocada pela narração dominada por forte carga psicológica. Uma narração a três vozes, três perspetivas diferentes sobre os mesmos acontecimentos e que se complementam.

A minha opinião sobre o livro pode resumir-se nesta passagem: “Estremeceu perante a natureza chocante daquela união, uma união de imagens que eram, ao mesmo tempo, repelentes e irresistivelmente belas.” (página 120). O primeiro capítulo é marcado pela violência física (atitudes do marido e do pai, a cena passada no hospital, a submissão das mulheres). O segundo capítulo é marcado por imagens “irresistivelmente belas” de forte carga sexual que não se tornam chocantes pela beleza das descrições cheias de sensualidade e erotismo: o casal pintado de flores a fazer sexo, as fortes pulsões sexuais do cunhado psicologicamente perturbado por uma atração inusitada, fixação pela nudez da vegetariana.

Ao longo da história, e sobretudo no terceiro capítulo, há fortes indícios do destino desta mulher que decidiu viver para ser uma árvore. Já não é a vegetariana, é um ser vegetal. 

Loucura? Obsessão? Libertação?


SER BIBLIOTECÁRIA É (TAMBÉM) ISTO!

Pequeninas coisas que preenchem a alma.

Pedro era assíduo na Biblioteca Escolar. Agora a frequentar uma escola profissional, voltou à antiga escola para fazer o empréstimo de um DVD necessário para um trabalho. Que lhe recomendasse um livro, também!

Optou por um, o título seduziu-o. Quando o devolveu, deixou-me uma mensagem:

“Obrigado por me recomendar este livro, ele dá uma lição de vida às pessoas. Gostei tanto! É uma história triste, até chorei, mas faz bem chorar.”

Desafio RBE 2021

25 de abril de 2021

INFÂNCIA


Infância, lá longe! 

Brincar na rua, saltar à corda na terra estafada, trincar a amora madura colhida na silva atrevida. 

E o verão preguiçoso prolonga-se no tempo.


2 de abril de 2021

ABRIL TRAZ DENTRO A LIBERDADE

 Há um ano, comecei a escrever neste espaço, nesta casa que, agora, sinto como minha. E o meu segundo texto publicado aqui teve Abril como tema. Um ano depois, repito o tema. Abril nunca se esgota. Abril tem dentro dele a liberdade.

Há 47 anos, em abril, conquistou-se a liberdade em Portugal, após um regime de ditadura que durou 48 anos. E, só aí, me apercebi, efetivamente, que ela existia. Era eu uma criança com 13 anos, sem nada saber do mundo. 

Antes do dia 25 de abril de 1974, vivia no meu pequeno meio, rodeada de irmãs, primas e primos e divertíamo-nos, supúnhamos, livremente. Sem nunca ter ouvido a palavra liberdade. Sem imaginar, sequer, que essa palavra era proibida. Sem sentir que não a tínhamos. 

Na escola não se falava disso, claro! A escola servia o poder reinante. Tudo o que interessava que soubéssemos era memorizado. E, se não fosse naturalmente memorizado, a impiedosa palmatória tratava do assunto. No manual único, aprendíamos o português, a história, a geografia, a matemática e a doutrina cristã. No mapa, apontávamos as serras, os rios e os caminhos de ferro. Ensinavam-nos a bordar, a coser botões, a tricotar. Mas não nos ensinavam a descobrir, nem a pensar, muito menos a contestar. 

Em casa, também não se falava disso, apesar de algumas tentativas. Havia um disco de Zeca Afonso que o meu pai nos proibiu de ouvir. Porquê? Veio uma resposta lacónica. 

Quando umas amigas (deduzi, mais tarde, que a família estaria envolvida, clandestinamente, com o partido comunista) disseram que a professora de Educação Visual era da PIDE, não percebi. Em casa, questionei a mãe. Veio uma resposta lacónica.

As minhas leituras de então levavam-me a mundos de aventuras e de grandes paixonetas. Divertiam-me e apaixonavam-me, mas não me ensinavam nada da vida real e, muito menos, de política. 

Vivíamos encarcerados numa sociedade onde prevaleciam o obscurantismo, o preconceito e a falta de direitos. Onde o medo existia porque o perigo de uma denúncia espreitava em todas as esquinas. Mas eu só tinha 13 anos e o meu mundinho era dourado! E não imaginava que alguém lutava e sofria para que a liberdade chegasse um dia e fizesse o país recuperar os sorrisos. 

Portanto, o meu pequeno mundo de ignorância continuou até à Revolução. 

Não posso esquecer a sensação de ver, na televisão, a libertação dos presos políticos e, pela primeira vez, ouvir testemunhos das atrocidades que lhes fizeram nas prisões. 

Não posso esquecer o ambiente eletrizante vivido no Liceu de S. João da Madeira que eu frequentava nessa altura. E houve professores que foram mesmo destituídos por estarem ligados ao regime fascista e que viram as suas vidas viradas do avesso de um dia para o outro. 

O dia 26 de abril de 1974 foi um dia diferente. Respirava-se outro ar. Havia uma sensação de alívio e de libertação. Havia gritos de alegria. Até no vocabulário. Lembro-me de uma amiga dizer o que, na altura, era um palavrão impensável de se dizer em voz alta: “Agora já podemos dizer merda!”.

Bonitas eram as palavras novas que começaram a entrar no léxico de quem as desconhecia, como eu, inocente e ignorante das coisas do mundo. Palavras cheias de sonoridades, de significados, de poesia. Liberdade. Democracia. Direitos. Fim da guerra colonial. 

E, só no ano seguinte, na escola, comecei as leituras que me fizeram abrir os olhos e a mente. Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes, e Constantino, guardador de vacas e de sonhos, de Alves Redol, foram os primeiros livros que me fizeram mergulhar na realidade portuguesa e refletir sobre as desigualdades sociais. Até esse momento, nunca me tinha questionado por que motivo as minhas colegas da escola não tinham continuado os estudos comigo, sobretudo a melhor aluna da turma, que fora trabalhar numa fábrica, com dez anos. Até esse momento, não me questionava sobre nada. Mas, a liberdade recém-conquistada permitiu chegar às estantes os livros proibidos e esses permitiram-nos aprender a refletir e a questionar, a criticar e a contestar. Os discos proibidos também puderam ser colocados na aparelhagem e ouvidos. E as canções de Zeca Afonso, Sérgio Godinho, Manuel Freire, Adriano Correia de Oliveira, Pedro Barroso, Ary dos Santos cantava-as eu em alta voz. Finalmente, tinha percebido o quanto "fazia falta avisar a malta". 

A Revolução tinha chegado. O país começara a mudar. E, finalmente, os sonhos em incubação começaram a tomar forma. O amanhã já não era longe demais.

texto publicado na revista online "A casa do João"


7 de março de 2021

INCÊNDIO


Não é preciso um fósforo para atear o incêndio. 

Em fogo lento, arde a cidade. 

Bastou uma sílaba acesa: flor.