30 de dezembro de 2020

A ZANGA DO Z

O Z zangou-se. E a vingança foi terrível. Instaurou uma ditadura no alfabeto e, na tomada de posse, declarou:

- O S e o X roubaram-me! Avizo que, desde hoje, só passará no ezame quem me uzar como mereço. Não quero zaragatas! Nem zangas! Nem surprezas! Quero ezibir-me com êzito! Mostrar toda a minha beleza! Quem zelar pela ordem será um bom ezemplo e ezaltado nos melhores prontuários. Os outros? Azar! Irão bazar para o ezílio! Em ziguezague!

"Desafia-te", Re-word-it: “O Z acha que ninguém lhe liga”




14 de novembro de 2020

E TODAS AS DESCULPAS SÃO BOAS PARA LER!

É noite. Fecho os olhos para melhor ouvir quem me chama. E há uma chamada que me inquieta, um desejo que não sossega e teima em ficar.

São os livros que, nas estantes onde moram, anunciam vidas.

Há gritos e sussurros. Há lágrimas e gargalhadas. Há todo um mundo lá dentro.

Eles têm tanto para contar! E como é bom ter tantas vozes para ouvir e com quem dialogar.

E todas as desculpas são boas para ler!

7 de setembro de 2020

VALEU A PENA

Era o último. Vira os companheiros sumirem-se, um a um, durante vários dias. Vivia fechado, sem liberdade, mas antes isso do que a morte.

Chegou o dia. A caixa abriu-se e ele ali, só, olhava as mãos que o iriam destruir. 

Valeu a pena. Deu a vida para acender a vela que iluminou o escritor enquanto escrevia o seu melhor romance. 

Lá fora, a tempestade rugia. Sem luz elétrica, o escritor sorria, iluminado por uma chama incandescente.

Desafio nº 218 - texto sugerido pela imagem


19 de agosto de 2020

UM VERÃO INVULGAR

Que se lixe 2020, o ano que já deveria ter "passado à História"!

Numa altura em que já toda a gente "trepava pelas paredes" e "arrancava cabelos", eis que chega o verão e as tão desejadas férias para nos pormos à "sombra da bananeira". Mas, todo o cuidado continua a ser pouco. Então, marcam-se ou não se marcam as tão desejadas férias fora de casa? E lá fica toda a gente "de pé atrás", "a torcer o nariz", na dúvida se deve ou não deve sair. 

É preciso "andar na linha" que o bicho morde! Mas, "perdido por cem, perdido por mil"! Vamos "abrir mão" de uma oportunidade de apanhar sol estendidos na praia, de mergulhar entre peixes e moluscos, de "comer do bom e do melhor" sem ter de cozinhar…? No way!!! "Tire-se o cavalinho da chuva"! Já se anda a "bater na mesma tecla" há muitos meses!!! Há que "fazer orelhas moucas" e "vista grossa" e agarrar o verão "com unhas e dentes". 

As pessoas querem "soltar a franga", é um direito! E, quem "se armou até aos dentes", com gel desinfetante e máscaras, e partiu, muito se admirou, sobretudo quem partiu cedo. Se, em anos anteriores, entrar em certas praias portuguesas era como "meter o Rossio na Betesga", este ano sobrava areia!

Ora, então, "façamos o balanço" da situação: para quem partiu de férias e se divertiu, esses dias são "favas contadas". Quem hesitou e ficou em casa "a ver navios", vai ter, possivelmente, "dor de cotovelo" dos ousados (ou inconscientes, vá-se lá saber!).

"Uma mão lava a outra" e as duas sacodem o vírus! Esperemos, apenas, que ninguém tenha "metido a pata na poça" e que quem "andou à chuva" não se tenha molhado!


6 de agosto de 2020

HÁ DIAS COM SABOR A VERÃO

Em março, foi apresentado ao público o meu último livro intitulado Os dias são assim. Cinco meses depois, os dias continuam assim, uns mais apetecíveis, outros menos.

Hoje, foi um dia assim. 

Um dia de abrir as portadas e dar os bons dias ao sol. De encher as tostas com compota e saborear o leite frio. De trincar a fruta preferida. De aterrar num cantinho do paraíso. De encher os pulmões com o ar do mar. De mergulhar entre algas, peixes, caranguejos e mexilhões partilhando o seu reino. De observar as idas e vindas das marés que, nas suas viagens, transfiguram a praia. De apreciar o voo louco das gaivotas. De respirar à sombra de uma árvore. De sentir a brisa a soprar. De cheirar a infância nos odores da mata. De passear um livro. De beber poesia na esplanada de um café. De lamber o gelado a derreter. De ver as horas a passar lentamente. De deixar o dia andar devagar. De saber esperar. De absorver a paz da noite que, entretanto, trouxe o silêncio.

Hoje, foi dia de ficar quieta a ser feliz.

Há dias assim, com sabor a verão.




3 de agosto de 2020

"UM MILAGRE GUARDADO NA ESPERANÇA"

Já tinha perdido a conta. Já não sabia quantas vezes fora ignorado, humilhado, maltratado.

Desde que começara a frequentar a escola.

Desde que começara a procurar emprego para o qual se formara.

Desde que decidira confrontar o mundo com a namorada branca.

Desde que deixara de ignorar os abusos.

- Igualdade! - foi o grito interior de Tomé, já sem forças para respirar. Mas, antes do último suspiro, ainda conseguiu balbuciar: a igualdade é "um milagre guardado na esperança".

Desafio 212 ― Frase de Valter Hugo Mãe

30 de julho de 2020

E AGORA?

 O teste deu positivo! E agora?

Agora tinha um caso bicudo para resolver.

Como iria dar a notícia ao seu pequeno mundo, tão fechado, onde se guardavam todas as distâncias? Como foi possível ter-se deixado cair em tentação?  Como se esquecera dos votos?

Não resistira a uns insinuantes olhos azuis, nem a umas mãos maliciosas entranhadas nos seus longos cabelos. Estremeceu.

E agora?

Iria deixar cair a máscara de santa e ficar com a criança nas mãos.

Desafio nº 215 - 7 palavras obrigatórias


21 de julho de 2020

Ano 2020

Número duplamente par.

Número redondo.

Número sonante, aliterado. 

2020 tinha tudo para ser um ano perfeito.

No entanto, não só não está a ser perfeito (e meio ano já está passado!), como se cobriu de feias cicatrizes (acho que não há cicatrizes bonitas!).

O Coronavírus transporta consigo um conjunto de mazelas que, dificilmente, passarão e deixarão marcas profundas na sociedade.

A saúde ficou comprometida. A economia ficou de rastos. As aulas à distância, cansativas, pouco produtivas, deixaram as escolas viradas do avesso. As paciências e tolerâncias esgotaram-se. Penso que, neste momento, já ninguém tem fé no “vai ficar tudo bem”.

As máscaras tornaram-se um acessório de moda obrigatório. Na rua, nas lojas, as pessoas parecem cães açaimados. Já não há sorrisos. Não se veem!

No meio de tantas mortes, este foi o ano da morte de gente que me toca particularmente. Os escritores Luís Sepúlveda, Carlos Ruiz Zafon, Rubem Fonseca. Os atores (tão jovens!) Filipe Duarte e Pedro Lima. O amigo Carlos Faria.

Este foi o ano do lançamento do meu último livro, Os dias são assim. E os dias ficaram assim, a partir de 13 de março. Parados, sem gente nas ruas, sem gente nas escolas, sem gente nos espaços culturais. Como tal, o livro teve o primeiro lançamento e as sessões marcadas que se seguiriam foram canceladas. Frustração!

Julho a acabar e as cicatrizes continuam. Filha em layoff. Marido com um episódio de amnésia global transitória passa um dia no hospital. Dia de stress e, sabe-se lá, quantos mais dias de stress virão à espera de novos episódios!

E tantos outros dias à espera, na indecisão do que será o próximo ano letivo. Setembro aproxima-se e todos estão conscientes das dificuldades e das provações que aí vêm.

Férias marcadas, mas cheias de restrições.

Adivinha-se um reforço da pandemia no outono.

A primavera não se sentiu e o verão…. Veremos!

O mundo precisava urgentemente de tomar o rumo da solidariedade, da igualdade e da inclusão. Veio uma pandemia à escala mundial e as diferenças acentuaram-se assustadoramente. 

Um ano que tinha tudo para ser perfeito tornou-se um Frankenstein medonho que todos querem eliminar das suas vidas. Gostaria de ter um corretor bem possante que o apagasse. Porque não há antirrugas que lhe disfarcem as cicatrizes.


12 de julho de 2020

DESENRAIZADA

Gemeu quando a cortaram, mas os seus gemidos foram em vão. Ninguém a ouviu (ou ninguém a quis ouvir!). O destino estava traçado e, em breve, a árvore seria uma peça de mobiliário ou o chão de uma casa qualquer.

Então, ousou sonhar. Não queria que lhe matassem a alma e só haveria uma forma de continuar viva. Desenraizada da terra, desejou ser transformada num barco. Enraizar-se-ia no mar, viajaria, veria mundo e poderia continuar a sorrir.

26 de junho de 2020

AINDA O XICO POR QUEM ESTOU APAIXONADA

A aula de pilates de hoje foi adocicada pelas vozes de Jorge Palma e Pedro Abrunhosa. E, por coincidência (ou não, vá-se lá saber!), duas canções grávidas da palavra "olhar" ficaram-me no ouvido.

"Tudo o que eu vi,
Estou a partilhar contigo
O que não vivi, hei-de inventar contigo
Sei que não sei, às vezes entender o teu olhar
Mas quero-te bem, encosta-te a mim."

"Se eu fosse um dia o teu olhar,
E tu as minhas mãos também,
se eu fosse um dia o respirar
E tu perfume de ninguém."

Estes olhares, os das musas dos poetas, não são os do Xico, mas, imediatamente o olhar do Xico me inundou os pensamentos. A aula passou a ser um tanto desconcentrada e o Xico passou a ser a minha musa.


Não se resiste ao olhar do Xico. Um olhar que fala. Um olhar com um brilho húmido que nos toca e nos encanta.

O olhar do Xico é meigo quando lhe damos mimos e nos mima (a toda a hora). É triste quando estamos ocupados e não lhe damos atenção. É curioso quando a campainha toca ou ouve um ruído estranho. É envergonhado quando lhe ralhamos porque ainda faz xixi em casa. É preguiçoso quando descansa na sua cama. É malicioso quando nos desafia para uma corrida ou quando se agarra aos nosso atacadores ou à nossa roupa.
O olhar do Xico diz tudo o que precisamos de saber!
Já não há volta a dar. Tudo o que vivemos partilhamos com ele, o que não vivemos sem ele, inventamos, agora. Entendemos o seu olhar e queremo-lo bem encostado a nós!


25 de junho de 2020

XICO


A chegada de uma criança é sempre motivo de festa e de grande alegria. Seja filho, seja neto. Para filhos já é tarde, a idade já passou. Para netos, seria a altura ideal, mas circunstâncias várias ainda não o permitem. Entrou o Xico. 
O Xico não é um bebé. O Xico é uma pequenina bola de pelo. Dizem que é um cão. Um spitz anão, com um lindo focinho de raposa. Para nós é o furacão que nos invadiu as vidas, há quinze dias, ainda nem dois meses tinha. Um furacão com 680 gramas. Um furacão de alegrias e gargalhadas. 

Sempre gostei de cães e de gatos. Mas sempre recusei ter um em casa. Para evitar preocupações, para evitar trabalho. Para evitar despesas. Para evitar prisão. No fundo, apenas questões egoístas. Os últimos quinze dias superaram tudo e uma lufada de ar fresco soprou cá em casa.
O Xico, afinal, é um bebé. Pelo menos, age como sendo um. Tem os seus momentos para comer, para a higiene, para dormir. Passa praticamente todo o tempo a dormir e, apreciá-lo, é apreciar um bebé no seu sono inocente. Quando desperto, são únicos os momentos de brincadeira, de corridas no terraço, de lambidelas. De carinhos.
O seu olhar é terno e derrete-nos quando nos olha fixamente como querendo dizer que já nos adotou, que somos nós a sua família e que nos adora. E a casa também já é dele e já não tem segredos. Demorou três dias a conhecê-la e chorava sempre que lhe mostrávamos um compartimento novo. Rapidamente, porém, se ambientou e corre tudo, fazendo-nos correr à sua procura, quando desaparece e não sabemos se está dentro de casa ou no terraço.

Se, inicialmente, subir para a sua cama se assemelhava a uma subida do Everest, agora parece um elegante bailarino assente nas patas traseiras.
Em quinze dias, o Xico cresceu. E não para de crescer o nosso amor por ele. Assim como os mimos sem conta.
E, nestes três meses de confinamento, de desordem, de situações atípicas, o Xico foi o mais atípico maravilhoso que nos poderia ter acontecido!





14 de junho de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO LIX

Ah! Se eu tivesse poderes! Se eu tivesse saberes para criar um medicamento, a cura de uma doença  tão atual, que, de tão banal, se tornou descomunal!
Tanto que eu gostaria de encontrar a cura. Mas, estupidez não terá cura!

10 de junho de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO LVIII


Ao cabo de três meses no Cabo das Tormentas, a paciência esgota-se. Tem sido o cabo dos trabalhos! Cabo da internet, cabo do telemóvel, TV por cabo. Raios! Já não se aguenta tanto cabo, torna-se difícil levar a cabo tantas tarefas.
E ninguém dá cabo do bicho que dá cabo de nós. Sobranceiro, ninguém o vê. Este novo Adamastor não tem uma história de amor para contar, não se verga. Só o Amor faz vergar os monstros.

Desafio nº 210  da Margarida Fonseca Santos (usar, o mais possível, a palavra cabo)


5 de junho de 2020

CLUBES DE LEITURA, UMA REALIDADE

O ato de ler já não é um ato solitário!

Falar em livros e em leituras leva-nos a falar em partilhar esses livros e essas leituras e as redes de partilha proliferam, quer presencialmente, quer nas redes sociais. Graças às tecnologias, que conduzem à criação de espaços de leitura híbridos, em que o mundo digital se cruza com o mundo real, o leitor tem novas experiências e novas dinâmicas de leitura. Ler, criticar, recomendar livros, ter oportunidade de conversar sobre e com os seus autores são um bom motivo para que os Clubes de Leitura sejam uma realidade. 

Faço parte de um Clube de Leitura, na Biblioteca Municipal de S. João da Madeira. Um clube de Leitura existe para quem gosta muito de ler e, sobretudo, para quem gosta de ter com quem conversar sobre os livros lidos. Se o grupo criado é interessante q. b., torna-se um excelente pretexto para sair de casa e conviver tendo os livros como elemento de união. 

As sessões acabam por ser dinâmicas, muito participadas, por vezes acaloradas, por vezes choradas. Umas vezes despertam gargalhadas, outras vezes despertam profundas reflexões, de acordo com os temas dos livros lidos.

Mais do que analisar as obras, o objetivo de um Clube de Leitura é proporcionar a troca de experiências de leitura. A mesma obra, lida por pessoas com vivências diferentes, proporciona análises diferentes, naturalmente. Mas, mais do que análise literária (que também se pode fazer), o mais importante é analisar sensações e sentimentos que o livro despertou em cada leitor. E é muito gratificante haver a possibilidade de conviver, também, com os autores dos livros que aceitem o convite para estarem presentes.

Se não frequenta um Clube de Leitura, deveria pensar nisso. Se não existe um já criado, na sua zona de residência, poderá sempre pensar em criar um. Apenas alguns conselhos:

  • Tenha em conta o público que pretende convidar para fazer parte do seu clube, pois o grupo deve ser coeso;
  • As sessões presenciais devem ter data fixa e funcionar num local aprazível;
  • A escolha dos livros a ler deve ser consensual;
  • O Clube deve ser amplamente divulgado para poder ser alargado.

E onde criar um Clube de Leitura? Na Biblioteca Municipal (se é bibliotecário), na escola (se é professor ou aluno), ou em casa, como fizeram as personagens dos seguintes filmes: O Clube de Leitura de Jane Austen (um clube fundado para se discutir unicamente a obra da escritora inglesa Jane Austen; Do jeito que elas querem (Book Club no original), onde quatro amigas sexagenárias se reúnem regularmente para  lerem e comentarem várias obras até que uma propõe a leitura de As 50 sombras de Grey, o que vai mudar as suas vidas e o modo como encaram a sua sexualidade; A Sociedade Literária da Tarte de Casca de Batata, realizado a partir do livro de Mary Ann Shaffer e Annie Barrows, cujo enredo decorre em Guernsey, ocupada pelas tropas alemãs durante a segunda Guerra Mundial, onde as pessoas formam um clube secreto a que dão o nome de “Sociedade Literária da Tarte de Casca de Batata”.

Não sendo, de todo, possível criar ou participar num Clube de Leitura presencial, as redes sociais oferecem uma panóplia de escolhas (grupos no Facebook, Goodreads, Whattpad, entre outros), a questão é, apenas, querer.

Se, como disse Umberto Eco, “O mundo está cheio de livros fantásticos que ninguém lê”, um Clube de Leitura vai permitir atenuar esta ideia. Há sempre alguém que já leu um livro que ainda mais ninguém tinha lido e, sugerindo a sua leitura, é menos um nas estatísticas dos livros não lidos.

texto publicado na revista online "A casa do João"

3 de junho de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO LVII


ainda ontem
estávamos juntas
bebemos chá
na esplanada
outras amigas vieram
comemos bolo
conversamos
rimos à gargalhada
despedimo-nos
com um beijo

ainda ontem
E hoje?





31 de maio de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO LVI

Nova fase de desconfinamento, mais abertura.
Finalmente pude usufruir de um prazer tão simples como tomar um café numa esplanada. Quase vazia, é um facto, com as mesas afastadíssimas umas das outras, mas valeu a sensação de liberdade, um café, ao ar livre, dois meses e meio depois do último!
São pequenos prazeres como este que o bicho coronavírus nos roubou. Outro prazer roubado: o de entrar numa biblioteca para requisitar um livro ou numa livraria para o comprar. São espaços que nos transmitem tantas sensações! Ver os livros alinhados e percorrer as estantes até encontrar o que se pretende. Sentir o seu cheiro. Tactear as suas folhas e sentir a textura do papel. E, por incrível que pareça, as sensações auditivas que estes espaços proporcionam, mesmo que se encontrem vazios, são incríveis. Dentro dos livros há vidas e eles gritam para chamar a nossa atenção. Querem ser levados.
Este prazer ainda não foi recuperado. O livro, encomendado na Internet, chegou a casa. Mas não é a mesma coisa!
Por outro lado, se muitos prazeres foram roubados, outros vieram substitui-los. Observar a Natureza que, repentinamente, passou a revelar-se despudoradamente, faz-nos (re)descobrir o quanto ela é bela em toda a sua simplicidade. Não me lembro de, nos anos transatos, ter visto as amoreiras floridas de forma tão provocadora!

24 de maio de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO LV

Toda esta situação, vivida há mais de dois meses, está a “ser um grande bico de obra” e a deixar-nos “feitos num oito”.  Já começa a chegar-nos "a pimenta ao nariz".
“Enquanto o diabo esfrega um olho”, tudo “foi por água abaixo”, tantos projetos ficaram em "águas de bacalhau" e foi preciso dar “corda às sapatilhas” para nos reinventarmos. Confinados em casa, fizemos experiências culinárias. Há quem se queixe que está a “comer que nem um abade” e a cozinhar comidas que fazem “crescer a água na boca” só de ver as fotos. Mas, o pior é para aqueles que ficaram “de mãos a abanar”, sem emprego, sem dinheiro e sem ter o que comer. Felizmente, há gente solidária que, “de braços abertos”, “arregaça as mangas” e põe “pernas ao caminho” para ajudar.
Muita gente, eu incluída no grupo, já está “pelos cabelos” e com “a cabeça em água”. Os professores têm trabalho acrescido, com as aulas à distância e, às vezes, parece que estão “a falar para o boneco” ou a “falar com os seus botões”. As paciências “estão por um fio”! Mas, temos de pensar naqueles que têm passado as verdadeiras “passas do Algarve”, os doentes e todos os que trabalham nos hospitais. Estes, sim, têm-se mostrado “à altura” e “comido o pão que o diabo amassou”.
E estaremos todos “no mesmo barco”? Não me parece! Não estamos todos “no mesmo pé de igualdade” e é preciso pôr "os pontos nos iis”! Se uns encontraram o “negócio da China”, se uns “não têm mãos a medir” de tanto trabalho, outros estão mesmo em “maus lençóis”, “com a corda na garganta”, a “apertar o cinto” de tal maneira que até dói. “Não pregam olho” e passam noites “em claro”. E muitos vão ficar “apanhados do clima”. Empresas e comércio “às moscas” vão trazer consequências. Se há gente que é “pau para toda a colher” e aguenta firmemente, outros há que “não podem com uma gata pelo rabo” e rapidamente se “vão abaixo das canetas”.
“Arejar as ideias” ao sol parece que ajuda. Agora que o desconfinamento foi permitido e o povo saiu à rua, como se “não houvesse amanhã”, esperemos que não “fique o caldo entornado” e que esta libertação não seja “sol de pouca dura”. É um facto que todos estamos a necessitar de “desenferrujar a língua” com os amigos, porém, é preciso “andar na linha” para que o vírus não volte a “pintar a manta”.
Neste momento, o verão aproxima-se a passos largos e seria altura de fazer planos para férias. No entanto, não adianta “fazer castelos no ar”! O vírus parece que veio para ficar, está a dar-nos “água pela barba”, “leva-nos aos arames” e “deixa-nos às aranhas”. Se queremos “mudar de ares”, pensemos em “ir para fora cá dentro”, de preferência que o cá dentro seja o nosso jardim ou terraço! “Cautela e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém” para que “não nos saia cara a brincadeira”!
Somos um povo “de armas”, assim “reza a História”. Mas, santa paciência! Não “temos sangue de barata”! “Cortarem-nos as asas”, isso não! “Deixarem-nos atados de pés e mãos”, nem pensar! E, ainda por cima, com “uma mão à frente e outra atrás” deixa qualquer um “com os azeites”!
Seria “ouro sobre azul” se o danado vírus, “num abrir e fechar de olhos”, se “despedisse à francesa”, e partisse tão depressa como chegou.
“Estamos a braços” com uma situação complicada, é certo, mas não vamos “baixar os braços”, mesmo “estando em brasa”. Temos de “fazer das tripas coração” e dedicarmo-nos “de alma e coração” a um projeto que nos mantenha a saúde mental.
“Para a frente é o caminho”. E tudo isto há de “passar à História”! Não sei é quando, pois, encontrar a cura, é “como encontrar uma agulha num palheiro”. Também não sei se tudo será “fechado com chave de ouro”! Pelo que se ouve na comunicação social, o melhor será "tirarmos o cavalinho da chuva" e "esperarmos sentados" até que a coisa passe!

22 de maio de 2020

DIA DO AUTOR PORTUGUÊS

Hoje, é o Dia do Autor Português. Foi com o propósito de o homenagear e de destacar a sua importância no desenvolvimento da cultura e do bem-estar da comunidade que se criou esta data em 1982. 
Este dia assinala igualmente o aniversário da Sociedade Portuguesa de Autores.
Na qualidade de autora de alguns livros publicados, aqui fica a gravação da leitura de um dos meus (muitos) microcontos em 77 palavras, do livro Em poucas palavras.


18 de maio de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO LIV

Pois agora que estamos na segunda fase do desconfinamento, ou lá o que isso seja, é muito bom, assim se finta o bicho que se julga mais esperto que a gente, e a gente gosta tanto do mar e da praia, até somos um país de marinheiros que muito se esforçaram para que o mar fosse nosso, e foi um regalo, ontem, que o sol até veio fazer a festa e brilhou muito e aqueceu o tempo e nem deixou que o vento viesse incomodar e, como estava a dizer, foi um regalo mergulhar o pezinho na areia e molhá-lo no mar, e a gente também gosta muito de esplanadas e de se sentar numa para saborear o belo do pastel de nata com a bela da meia de leite ou a rica cervejola com uns amendoins e uns tremoços, há lá coisa melhor, como pode o bicho impedir a gente de ter tudo isto, que se lixe o bicho, parece tolo, vá lá para a terra dele, que a gente aqui não o quer, onde se viu isso, roubar-nos os prazeres, impedir-nos de estarmos na rua todos juntos a falar mal dos vizinhos e a fazer queixa do governo que agora até nem dá para falar mal dele, o governo anda bonzinho, até nem vai entrar em austeridade e até vai apoiar os laiofes, ou lá o que isso é, e até aumentou os salários com uma percentagem quase tão pequena como o bicho que ninguém a viu, e como a gente deve evitar aglomerações, até deu jeito fazer uns piqueniques, afinal a gente tem tantas matas como mar, e é tudo ao ar livre, não há mal nenhum nisso, não há nada como umas geleiras cheias de cerveja e coca-cola e rissóis e bolos de bacalhau e o tacho do arroz embrulhado num cobertor, no jornal agora não, porque agora não dá jeito sair de casa para ir comprar o jornal, por causa do Covid!
...
Ora então levai lá o recado que não é da Guidinha* que já cá não anda há muito tempo, mas é de uma prima afastada.

* referência às Redações da Guidinha, de Luís de Sttau Monteiro

15 de maio de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO LIII

É tão bom quando nos convidam a participar em eventos de leitura!
Este ano, as 24 horas das bibliotecas escolares, organizadas anualmente pelo CFAE AVCOA, não se puderam realizar presencialmente. No entanto, o ser humano é resistente e persistente e não se deixa desmoralizar. E as leituras aconteceram. Em casa de cada pessoa convidada. Ei-las.

 

São momentos assim que não nos deixam ir abaixo quando o que apetece é gritar bem alto e insultar o bicho!

UM DESAFIO, UM PRÉMIO

Tendo participado num dos passatempos da The Book Company (o livro de Afonso Cruz, Jalan, jalan, foi a inspiração - ver aqui), acabei por ganhar um livro que chegou hoje. Mais um para o muro de livros a ler, construído no parapeito da janela, junto à minha secretária de trabalho.

13 de maio de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO LII

Há dois meses em casa em teletrabalho. Pensei que teria todo o tempo do mundo para ler, pelo que construí um muro com livros para serem lidos durante o confinamento. Ao fim deste tempo todo, o muro já deveria estar destruído. Ingenuidade!
Se, por um lado, o trabalho online é mais exigente e requer muito mais tempo (até porque é uma altura para muita aprendizagem), por outro, tanto tempo com as tecnologias acaba por dispersar a atenção e a concentração está a fugir a sete pés!
No entanto, acabei de ler um que, há muito, esperava a sua leitura: A minha verdadeira história, do escritor espanhol Juan José Millás.
"Escrevo porque o meu pai lia. Vejam-me na sala da casa de então, os móveis escuros, escuro eu também atrás do cadeirão. Sou o miúdo a quem a mãe diz: não grites, que o papá está a ler; não corras pelo corredor, que o papá está a ler; baixa a televisão, que o papá está a ler... O papá está a ler. O papá não faz outra coisa senão ler."
Este é o primeiro parágrafo de A minha verdadeira história, um romance que se lê de um fôlego, por ser muito pequeno e pela força da narrativa que nos impele a chegar ao fim.

Um adolescente de 12 anos quer ser escritor porque o pai é um leitor que lê ininterruptamente. Só assim, o pai dará por ele, quando o ler, porque, na vida real rejeita-o, nem sabe que ele existe. A mãe contribui para isso, pois está constantemente a mandá-lo calar e a estar quieto porque o pai está a ler.
Este adolescente que se quer suicidar, precisamente porque o pai o ignora, atira um berlinde de vidro do alto de uma ponte (onde se deslocou várias vezes para se suicidar) o qual bate num carro, onde viaja uma família de quatro pessoas, provocando a morte de três elementos desta família (o casal e o filho).
Descobrindo, na estante do pai, os livros O idiota e Crime e castigo, ambos de Fiódor Dostoiévski, logo se imagina o protagonista destes livros e, assim, desenvolve a sua verdadeira história, mas sem nunca ter lido livro algum. No seu ponto de vista, ninguém é mais idiota do que ele e vive obcecado com o "crime" que cometeu, passando a vida à espera do castigo. Tão obcecado pela culpa, que não descansa enquanto não trava conhecimento com a única pessoa que sobreviveu, uma menina da sua idade, com uma prótese numa perna e de cara desfigurada.

“E aqui está a minha verdadeira história. Graças a ela descobri que o meu pai me ama desde que me vê como um filho de ficção, precisamente ao contrário da minha mãe, que sempre sonhou com um filho real.”

10 de maio de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO LI

E não é que as roupas voltaram a pregar-me uma partida e continuam a criticar-me? Já não há paciência! E, hoje, mais alguém se juntou à conversa. Ela vai linda, vai!

- Invejosas! Foi fim de semana, o sábado foi de festa, aniversário da filha dela, já era tempo de sairmos do guarda-roupa para arejar! - exclamaram as calças de couro verde e a blusa de seda em simultâneo.
- Invejosas, nós?! - gritaram as leggings, ofendidas. - Então não temos sido nós as eleitas, as mais usadas? Inveja de quê? Mas lá que era escusado termos ficado fechadas todo o fim de semana, lá isso era!
- Gaba-te, cesta, que vais à vindima! - exclamou um dos vestidos, o mais vaidoso. - Não fosse a chuva e trovoada de sábado, vocês veriam quem teria saído do armário para a festa de aniversário. Teria sido um de nós, certamente!
- Ou eu! disse a saia castanha de seda. - Afinal, continuo aqui, tão virgem como no dia em que fui comprada!
- Pois! Hoje saímos e fomos bem testadas - ironizaram as calças de ganga, as mais justas do armário. - Ela quis pôr-nos à prova, que é como quem diz, pôr-se à prova. Já que deu folga à balança, nós é que a avaliamos. Vá lá! Coubemos bem, pelos vistos não a apertamos muito dado que passou o domingo sentada frente ao computador, sem nos despir, e não se queixou de apertos.
- Vós falais, falais, e nós aqui a ouvir. Chegou a hora da nossa reivindicação! - exclamaram tristemente os aventais. - Mesmo num fim de semana de bolos, pão e várias refeições, nós não saímos da gaveta! Cup cakes de chocolate e de baunilha, bolo de cenoura, pão de água, sopa, bolonhesa, frango assado... e nós quietos, sem uso. A culpa é da Bimby que tem trabalhado sem parar e não suja! E, como vós, ó chiques, não tendes saído do armário, nós não fazemos falta para vos proteger! Não há direito!
- Contentem-se com a nossa sorte! Nós continuamos sem uso, sem respirar, fechadinhos nas caixas. As sapatilhas continuam a combinar com tudo, mesmo com as roupinhas do fim de semana, agora tão vaidosas, mas, não tarda nada, estão arrumadas novamente - sopraram os sapatos do interior das caixas onde vivem enterrados há dois meses.

Pronto! Chega! Recuso ouvi-los mais!

9 de maio de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO L

Hoje é dia de festa sem festa. Ou melhor, com festa, mas apenas a três, em vez de ser a mais de vinte.
Hoje, a mensagem é para ti, filha. Fazes 28 anos e não vais festejar o teu aniversário como gostas,  com toda a tua alegria e vontade de conviver com muita gente.
No entanto, tens o bolo de que gostas. De laranja. Simples. Sem recheio nem cobertura.

E pudeste distribuir os cupcakes à avó, aos tios, aos primos e às melhoras amigas. De fugida, é certo. Mas, assim, cada um pode, no recanto dos seus lares, saboreá-lo juntamente com uma taça de champanhe (ou uma chávena de chá) e brindar a ti. Brindar à vida. Brindar ao futuro.
E o vídeo que fizemos para comemorar o Dia da Mãe, há seis dias, fica como testemunho da nossa cumplicidade.
Hoje e sempre, só desejo que sejas feliz.

7 de maio de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO XLIX

Com o tempo fantástico lá fora, perdidas as palavras, só me resta uma frase:
Daria tudo para me sentar numa esplanada com um livro como companhia!

                                                             Memória de tempos bons!

5 de maio de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO XLVIII

Hoje, comemora-se, pela primeira vez, o Dia Mundial da Língua Portuguesa, instituído pela UNESCO. E, para homenagear a língua, nada melhor que escrever  um microconto, escolhendo as palavras para descrever o país, e, assim, responder ao desafio da Margarida Fonseca Santos de usar 7 palavras com o ditongo "ai". 
Brincando com as palavras , não há medo que se instale!

País de praias de areia fina que convidam ao bailado das gaivotas
País das maias às janelas e dos cravos nas lapelas. 
País dos xailes tricotados e das negras capas dos estudantes. 
País da paixão pelo fado, com música no coração. 
País de língua com sabor a mel e cheiro a mar, que viaja e aproxima. 
País das cantigas de amor, das romarias e dos doces conventuais
Este és tu. Portugal, país de poetas que te cantam.

3 de maio de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO XLVII

Hoje não é tempo de medo. É dia da mãe e de toda a ternura que existe entre mães e filhos. Um cordão que não se corta nunca.
E porque não podemos dar beijos nem abraços, pelo menos há um jardim onde nos podemos encontrar. E tu podes falar das tuas flores. E das tuas árvores que também são mães e estão a dar fruto. E dos teus gatos e gatas, mães que acabaram de dar à luz. E das tuas refeições que te esqueces de fazer de tão ocupada andas. E das tuas pinturas. E dos teus poemas. 
E o teu jardim é, também, um poema. 











2 de maio de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO XLVI

Fim de semana prolongado graças ao feriado 1 de maio que se viveu ontem. 
Vamos passar de estado de emergência para estado de calamidade e o desconfinamento vai começar a ser feito gradualmente. MEDO!

Finalmente um tempinho extra para escapar do computador e fazer frente aos armários. Parece que a primavera, que tinha chegado e virado costas, vai voltar de vez. Então, chegou a hora de rever os armários da roupa e do calçado. 
Devo estar a ficar maluca, depois de tanto tempo em casa e de tanta tecnologia. Não é que a roupa e o calçado começaram num diálogo acusatório que me deixou incomodada?
- Não percebo por que carga de água vem ela agora incomodar-nos com arrumações se, até aqui, não nos tocou! - reclamaram os vestidos.
- Sim! Temos estado aqui enfiadas, sem uso, sem qualquer préstimo, a ganhar pó e a correr o risco de passarmos de moda e ela não nos usa - queixaram-se as túnicas sacudindo as rendas.
- E nós? Enchemos três cruzetas e, apesar de sermos tão práticas, raramente daqui saímos. Ela diz que  passa muito tempo sentada e que nós lhe apertamos os movimentos - barafustaram as calças.
- Sorte a nossa! - regozijaram-se as leggings. - Nós, que raramente saíamos do armário, agora andamos num rodopio. Ela não gosta de nos usar, diz que fica um pipo, mas, agora, não tem outro remédio. Só nós a fazemos sentir-se confortável e, assim, logo de manhã, mal se levanta, fica pronta para a hora do pilates ou do yoga.
- Nós só saímos da gaveta duas vezes por semana, quando ela vai dar aula por videoconferência - constataram as camisolas.
 - É da maneira que nós saímos mais vezes - regozijaram-se as tshirts.
- Vede o que eu senti quando ela me vestiu, para ir dar aula, e,  logo de seguida, combina-me com umas leggings manhosas! - disse irritada uma túnica de seda com peito de renda.
- E, se não sois vós a sair do armário, somos nós. Conforto maior não há! - desta vez foram os pijamas a falar, inchados de orgulho.
- E nós, aqui arrumados a ganhar bolor? - gritaram, desanimados, os sapatos e as botas, do alto dos seus saltos altos. - Quando ela voltar a usar-nos vai dar cada tralho! Estamos convencidos que ela já não se aguenta em cima dos nosso saltos.
- Fazemos nossas as palavras das leggings: sorte a nossa, que raramente saíamos do armário e agora fazemos moda - disseram as sapatilhas, cheias de orgulho.
- Mas, lembrem-se disso, os mais confortáveis e mais usados ainda somos nós, agora e antes desta pandemia - disseram os chinelos. - Já éramos nós que lhe descansávamos os pés dos vossos saltos castradores, assim que entrava em casa. Só nos lamentamos de estarmos a ficar velhos, de tão usados e de tão lavados. Estamos convencidos que, brevemente, seremos substituídos!
- Eu nem digo nada! - queixou-se uma saia-calça de seda, totalmente virgem. - Fui comprada um pouco antes do confinamento e fiquei aqui confinada neste armário, sem vos conhecer, sem uso, sem saber o que é sentir o vento, a chuva ou o sol. Fui comprada e nunca usada. No entanto, tenho esperança que amanhã, como é o Dia da Mãe, possa ser usada e perder a minha virgindade! Mas, se ela me usa e me combina com os chinelos, estará o caldo entornado!!!
....
Não! Estou a sonhar, só pode. Não estarei assim tão maluca. Vou sair, dar uma volta ao quarteirão e respirar ar puro! Uma semana inteira de chuva e frio metida em casa não pode dar bom resultado!!!!


1 de maio de 2020

LEITORES, LEITURAS E BIBLIOTECAS

Enquanto leitora, desde que aprendi a ler, e professora, há muitos anos, não suporto a expressão, tantas vezes usada (inclusivamente nas escolas), “leitura obrigatória”. O adjetivo “obrigatória”, por si só, já afasta qualquer vontade de ler. 

Não poderia estar mais de acordo com o filósofo e escritor espanhol Fernando Savater quando,  numa entrevista conduzida pela jornalista Ana Sousa Dias, diz que os prazeres se contagiam, não se impõem, e que os jovens devem ser introduzidos na leitura de uma forma lúdica e não forçada para que, começando com obras mais acessíveis, aos poucos, passem para obras mais complexas.

Então, mais do que obrigar a ler (até porque o verbo ler, como disse Daniel Pennac, não suporta o imperativo), importa sugerir, mostrando os livros (capas, sinopses, booktrailers…), promover fóruns de leitura em sala de aula, falar dos livros e comprovar que têm magia, que vão dar prazer e divertir, que vão fazer sentir, que vão permitir viajar e viver de forma diferente. E vão dar a conhecer tantas vidas que vivem dentro deles. 

E muitas são as atividades possíveis para que estes objetivos, definidos pelo mediador de leitura, sejam alcançados. 

Um mediador de leitura que queira contagiar deve, voltando a citar Savater, “inteirar-se não dos livros que ele quer que o miúdo leia, mas, sim, dos livros que o miúdo quer ler”, facilitando o diálogo entre os livros e o leitor.

Não há mediador de leitura que leve os outros a ler se não conhecer profundamente os livros para os adequar ao gosto pessoal de cada futuro leitor, que não fale com paixão sobre eles, que não use técnicas de persuasão. Falar de um livro com imenso entusiasmo é o caminho certo para que o recetor ganhe vontade de o ler.

Enquanto professora de português, começo o ano letivo levando um saco de livros para a sala de aula, para os alunos começarem a fazer as suas escolhas. No blogue que mantenho para as minhas turmas são, também, sugeridas leituras de acordo com os seus interesses, a sua faixa etária, ou relacionados com conteúdos programáticos.  

Após fóruns de leitura, em sala de aula, já vi alunos saírem da sala a correr (literalmente) para irem à biblioteca buscar o livro que acabou de ser apresentado. 

Já vi uma aluna chorar porque era a única na turma que não estava a ler um livro, por isso não tinha nada para partilhar, ao contrário dos colegas que falavam com entusiasmo do livro que estavam a ler. 

Já ouvi uma aluna dizer, cheia de emoção, que quando tivesse um filho lhe daria o nome da personagem do livro que tinha acabado de ler, de tal maneira a marcou. Chamar-se-ia Shmuel, como o miúdo judeu do livro O rapaz do pijama às riscas.

As visitas à biblioteca escolar, pelas turmas, são fundamentais para que os alunos possam escolher os títulos, a partir da apresentação de um conjunto de livros de temas e géneros variados, que contribuam para lhes despertar a curiosidade pela leitura, assim como alargar o seu conhecimento de títulos que, provavelmente desconhecem. E os momentos de leituras para as crianças são únicos. É um prazer enorme ouvir os alunos - “Gostei tanto deste livro!" - e vê-los, de seguida, a quererem requisitar o livro que acabou de ser lido.

Tudo isto não acontece por acaso. É preciso envolver os alunos, antes, durante e depois da leitura, com atividades e técnicas variadas e sedutoras que captem a sua atenção e interesse. É preciso mostrar, assim como quem não quer nada, que entrar numa biblioteca é entrar num lugar mágico, é entrar num lugar onde se concede a todos os cidadãos a oportunidade e o prazer de serem andarilhos pelo mundo.

Para concluir, mais uma vez concordo com o grande pensador Fernando Savater: “ler também é diversão”. Pena que muitas pessoas não o tenham descoberto. Mas estão sempre a tempo!

texto publicado na revista online "A casa do João"

29 de abril de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO XLV

"O inimigo não é o vírus, o inimigo é o outro. É aquele que transporta o vírus e o transmite a outro. Vamos ter de usar máscara em todas as situações. A máscara vai passar a ser um acessório."
Só tenho a dizer isto: não me conformo. 
A máscara é uma prisão. A máscara é castradora. A máscara transforma o ambiente em algo de surreal, de filme de ficção científica. A máscara provoca-me medo porque me lembra que a situação é perigosa.
Agora que se fala em começar a aliviar o confinamento e a fazer com que a vida comece, aos poucos, a voltar ao normal, a máscara vai ser obrigatória. 
Normal? Com algo que me tapa a boca e o nariz e me impede de respirar livremente? 
Normal? Com algo que me impede de reconhecer as pessoas com quem me cruzo na rua?
Normal? Se não posso conviver sem preocupações, se tenho de estar a contar mentalmente os metros de distância a que tenho de estar dos outros?
Normal? Se nem na praia poderei usufruir da liberdade completa?
Normal? Se não posso abraçar nem beijar?

Hoje é o Dia Mundial da Dança. Dançar para esquecer. Vou. 


26 de abril de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO XLIV

Há 46 anos, comemorava-se o primeiro dia de liberdade em Portugal, após um regime de ditadura que durou 48 anos. E, só aí, me apercebi, efetivamente, que ela existia. Era eu uma criança com 13 anos, sem nada saber do mundo. 
Antes do dia 25 de abril de 1974, vivia no meu pequeno meio, rodeada de irmãs, primas e primos e divertíamo-nos, supúnhamos, livremente. Sem nunca ter ouvido a palavra liberdade. Sem imaginar, sequer, que essa palavra era proibida. Sem sentir que não a tínhamos. 
Na escola não se falava disso, claro! A escola servia o poder reinante. Tudo o que interessava que soubéssemos era memorizado. E, se não fosse naturalmente memorizado, a impiedosa palmatória tratava do assunto. No manual único, aprendíamos o português, a história, a geografia, a matemática e a doutrina cristã. Apontávamos, no mapa, as serras, os rios e os caminhos de ferro. Mas, não nos ensinavam a descobrir, nem a pensar, muito menos a contestar.
Em casa, também não se falava disso, apesar de algumas tentativas. Havia um disco de Zeca Afonso que o meu pai nos proibiu de ouvir. Porquê? Veio uma resposta lacónica. 
Quando umas amigas (deduzi, mais tarde, que a família estaria envolvida, clandestinamente, com o partido comunista) disseram que a professora de Educação Visual era da Pide, não percebi. Em casa, questionei a mãe. Veio uma resposta lacónica.
Quando os meus pais iam votar (em eleições, soube depois, ilusórias) eu questionava em quem tinham votado. Veio uma resposta lacónica. 
As minhas leituras levavam-me a mundos de aventuras e de grandes paixonetas. Divertiam-me e apaixonavam-me, mas não me ensinavam nada da vida real e, muito menos, de política. 
Vivíamos encarcerados numa sociedade onde prevaleciam o obscurantismo, o preconceito e a falta de direitos. Onde o medo existia porque o perigo de uma denúncia espreitava em todas as esquinas. Mas eu só tinha 13 anos e o meu mundinho era dourado! E não fazia a mais pálida ideia que alguém lutava e sofria para que a liberdade chegasse e fizesse o país recuperar os sorrisos. 
Portanto, o meu pequeno mundo de ignorância continuou até à revolução. 
Não posso esquecer a sensação que foi ver, na televisão, a libertação dos presos políticos e, pela primeira vez, ouvir testemunhos das atrocidades que lhes fizeram nas prisões. 
Não posso esquecer o ambiente eletrizante vivido no Liceu de S. João da Madeira que eu frequentava nessa altura. E houve professores que foram mesmo destituídos por estarem ligados ao regime fascista e que viram as suas vidas viradas do avesso de um dia para o outro. 
O dia 26 de abril de 1974 foi um dia diferente. Respirava-se outro ar. Havia uma sensação de alívio e de libertação. Havia gritos de alegria. Até no vocabulário. Lembro-me de uma amiga dizer o que, na altura, era um palavrão impensável de se dizer em voz alta: Agora já podemos dizer merda! 
Bonitas eram as palavras novas que começaram a entrar no léxico de quem, como eu, inocente e ignorante das coisas do mundo, as desconhecia. Palavras cheias de sonoridades, de significados, de poesia. Liberdade. Democracia. Direitos. Fim da guerra colonial. 
E, só no ano seguinte, na escola, comecei as leituras que me fizeram abrir os olhos e a mente. Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes, e Constantino, guardador de vacas e de sonhos, de Alves Redol, foram os primeiros livros que me fizeram mergulhar no neorrealismo português e refletir sobre as desigualdades sociais. Até esse momento, nunca me tinha questionado por que motivo as minhas colegas da escola primária não tinham continuado os estudos comigo, sobretudo a melhor aluna da turma, que fora trabalhar numa fábrica. Até esse momento, não me questionava sobre nada. Mas, a liberdade recém-conquistada permitiu chegar às estantes os livros proibidos e esses permitiram-nos aprender a refletir e a questionar, a criticar e a contestar. Os discos proibidos também puderam ser colocados na aparelhagem e ouvidos. E as canções de Zeca Afonso, Sérgio Godinho, Manuel Freire, Adriano Correia de Oliveira, Pedro Barroso, Francisco Fanhais e Ary dos Santos foram cantadas em alta voz. Finalmente, tinha percebido que "fazia falta avisar a malta". 
A Revolução tinha chegado. O país começara a mudar. E, finalmente, os sonhos em incubação começaram a tomar forma. O amanhã já não era longe demais.

25 de abril de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO XLIII

Hoje, a Liberdade está de parabéns. Sim, já é uma senhora crescida, faz 46 anos.

Depois de tanta polémica, devido à comemoração do seu aniversário na Assembleia da República, tudo passou e passou muito bem. Dentro dos limites do confinamento, é certo, mas a festa não ficou por fazer.
A festa não se fez no exterior da AR com uma imensa multidão. Fez-se no interior com algumas pessoas que não deixaram esquecer esta data tão importante para Portugal. E o discurso do Presidente da República foi bem claro e assertivo: "Deixar de evocar o 25 de abril, num tempo em que ele está, porventura, mais à prova nestes 46 anos, seria absurdo cívico. E não o fazer nesta casa da democracia com a presença de todos os principais poderes de estado e para além deles seria um mau sinal um péssimo sinal de falta de unidade no essencial.” 
A festa não se fez nas Câmaras Municipais. Fez-se nas redes sociais. 
A festa não se fez nas ruas. Fez-se nas varandas e janelas. Fez-se entre famílias com os meios tecnológicos ao dispor.
Não fazer a festa seria um absurdo. E, para absurdo, já basta o que basta. Já basta a situação de clausura monástica em que vivemos porque um ser miserável e minúsculo a isso nos obrigou. 
A vida atual tornou-se um nó apertado, parece um nó cego impossível de desatar. Mas, há sempre uma esperança. Haja paciência e alguma perícia. Depois de desatado, concluiremos que, afinal, o nó tem duas pontas e essas ninguém as consegue prender. Tal como essas pontas, também somos livres. Com ou sem vírus!
A liberdade foi uma conquista. E isso não pode ser ignorado. Nunca!

24 de abril de 2020

DIÁRIO DE UM TEMPO DE MEDO XLII

Em tempo de confinamento e de lojas fechadas, as livrarias e editoras estão a passar um mau bocado. Apesar da possibilidade de se fazerem encomendas online e de os livros chegarem a casa sem que seja preciso sair, parece que o negócio da cultura vai mal. Então, são várias as atividades de promoção da leitura e dos livros nas redes sociais. Desde grandes promoções a passatempos e desafios, tudo é uma forma de não deixar esquecer os livros.
"Eu Leio em Casa" e a The Book Company inauguraram uma série de passatempos com oferta de um livro por dia. Em cada dia da semana, foi lançado um desafio a apelar à criatividade dos participantes, a partir de um livro. 
Hoje, o desafio para se ganhar um exemplar do livro Febre, de Nick Louth, cada participante teria de enviar uma resposta à pergunta: «Que livro me tem ajudado a lidar com este período de isolamento?».  
Decidi participar, tendo escolhido o livro Jalan Jalan, uma leitura do mundo, de Afonso Cruz.
E porquê?

Jalan Jalan é um livro onde se volta, se passeia, se saboreiam as palavras. 
Em tempos de confinamento, Afonso Cruz leva-nos a andar na rua, a viajar não só pelo mundo, mas, também, por outros livros e autores. E pela existência humana que tanto tem de fantástica como de contraditória. 
Em tempos de confinamento, Afonso Cruz faz-nos olhar o mundo com outros olhos e sentir como são importantes as pequenas grandes coisas da vida.

É ABRIL, TEMPO DE CRAVOS E DE LIBERDADE

ilustração de Helena Veloso, in Do cinzento ao azul celeste

É abril e lá fora cheira a cravos. Dos que vivem nos canteiros e que, este ano, não serão cortados para servirem de estandarte nas comemorações da liberdade.

É abril e cá dentro cheira a cravos. Dos que vivem nos livros e, misturados com as palavras que ilustram, gritam liberdade.

Esse grito, este ano, não se ouvirá nas ruas, nas praças, só nos livros que lermos.

É abril, um mês que guarda dentro de si dois dias especiais que convidam à leitura. O dia Internacional do Livro Infantil e o Dia Mundial do Livro, respetivamente dia 2 e dia 23.

Urge, então, promover a leitura, falar de livros, dá-los a conhecer e a ler. E, sendo abril o mês do livro e o mês da liberdade, convoco, neste meu humilde texto, a boa literatura sobre este tema. Falar de literatura é partilhá-la e dar forma a tudo o que os livros nos fazem sentir e pensar.

Muitos escritores escolheram "Abril" como tema das suas estórias, um mês cheio de luz e de cores, um mês cheio de significados. E, no contexto da literatura para crianças e jovens em Portugal, são muitas as obras cujo tema é a Revolução de Abril de 1974. As primeiras edições surgem no final da década de setenta e, desde então, continuam a ser reinventadas novas estórias. Para que a memória não se apague, nunca.

Então, deixo a minha partilha, contando uma estória com os títulos que tanto me encantam e que moram nas minhas estantes, livros onde os cravos se espalham pelas páginas e perfumam as palavras com o seu odor a liberdade.

Romance do 25 de abril

Era uma vez um cravo que nasceu para transformar as armas em jarras coloridas e impedir que delas saíssem balas.

Esta é, então, a história de uma flor. A flor de abril trouxe a magia do luar e todos os anos faz uma viagem à flor do mês. A ornar a lapela do casaco do rapaz da bicicleta azul, não deixa esquecer os heróis, os destemidos capitães de abril que fizeram a revolução das letras e aniquilaram o ladrão de palavras que nos roubou o tesouro mais precioso e foi corrido à vassourinha, num dia de sol. Um dia que libertou dos combates, dos medos e da morte aqueles que se encontravam, lá longe onde o sol castiga mais.

E são muitas as estórias desse dia. 7 x 25 a sete vozes. Tantas estórias da liberdade são contadas neste país que deixou a felicidade entrar e mudou de cor passando do cinzento ao azul celeste.

E só quem viveu plenamente este dia poderá contar esta fábula dos feijões cinzentos com toda a emoção.

25 de abril, quase como um conto de fadas. Sempre.

Chegando a estória ao fim, e em tempo de isolamento social, fica um desafio para ajudar a passar o tempo: descobrir os autores destes títulos, procurar os livros e usufruir de boas leituras. E assim se vão contando os fios que tecem a História.

texto publicado na revista online "A casa do João"