29 de julho de 2023

O QUE ACABEI DE (RE)LER


Comprei o livro há já uns anos, sem saber nada sobre ele, sem conhecer a autora.  Penso que foi o título que me chamou a atenção. E a primeira frase, bombástica, também: “Quarenta quilos é muito peso.”

Como provavelmente acontecerá com toda a gente, logo pensei tratar-se de um romance sobre obesidade, transtornos alimentares ou algo do género. Desengane-se o leitor! A obesidade da narradora não é o foco do romance, embora seja um fator que o faz acontecer, pois é uma condicionante da sua vida, um obstáculo ao seu grande amor. Será, sobretudo, um pretexto para a narrativa de tantos acontecimentos, tantas problemáticas, tantos estados de espírito.

Seguir a vida de Maria Luísa, a narradora e protagonista, nascida em Moçambique e enviada pelos pais para Portugal em 1975, é entrar num mundo de conflitos psicológicos e de luta contra os estereótipos da sociedade. Luísa não encaixa nesta sociedade, nem na sua família, nem no seu próprio corpo: “O corpo não para de crescer. As mamas não cabem no sutiã. Sobram apertadas no peito e junto às axilas. Pesam. Preciso de outro, mas não tenho como o adquirir. A anca, o rabo e as coxas alargam. As cuecas demasiado pequenas apertam-me as virilhas, deixando marcas fundas, arroxeadas. Tenho o corpo destravado e cheio de fome.” (pág. 152)

A história da sua vida (e a dos seus pais, retornados de Moçambique após o 25 de abril de 1974) conduz o leitor numa viagem pela política, pela sociedade, pela música, pela televisão de um passado recente, num vaivém constante entre tempos que alternam o foi com o é, o que faz despertar nos leitores nascidos nos anos 60, memórias de tempos vividos e, provavelmente, já esquecidos.

Maria Luísa vive uma vida amorosa que perturba o leitor. São muitos os desejos, muitas as frustrações, muitos os dilemas o que a faz viver em constantes contradições. E a sua forma nua e crua de se expor pode chocar almas mais sensíveis. Mas é isto que faz deste romance um romance poderoso.

A técnica narrativa usada, sequências narrativas alternadas em que o passado antigo, o passado recente e o presente se confundem, obriga o leitor a estar atento e a envolver-se na história. Da mesma forma, a divisão do romance em capítulos com o nome das divisões da casa convidam-no a desenhar, mentalmente, a arquitetura da casa e a descobri-la: o leitor entra pela “porta de entrada”, o primeiro capítulo, e explora-a até ao "hall" (o último capítulo) que tanto recebe como deixa sair os convidados.

À tendência de o leitor associar a narradora à autora e crer que a vida de uma é a vida da outra, Isabela Figueiredo responde à pergunta, feita pelo jornal Público: o que é que distingue Isabela de Maria Luísa? “Essa é a pergunta à qual nunca irei responder. Se estivesse lá inteira, seria o caos. Quero prender o leitor, obrigá-lo a amar-me e sirvo-me de todos os estratagemas. A literatura é o privado e o íntimo, o autêntico, mas posso construir camadas sobre a autobiografia.” Montar uma narrativa, mesmo usando a experiência autobiográfica, não deixa de ser um trabalho ficcional, e Isabela fala de um leitor que numa sessão de apresentação do livro elogiou a sua coragem em revelar um episódio que, diz ela, não foi vivido por si: “Adorei e assumi. É tudo verdade e é tudo ficção. Uso a minha vida para construir outra vida. Estou aqui, este é o meu corpo e o meu corpo está aqui para tudo, amem-me, dêem-me pancada, façam o que quiserem.  Estou aqui para fazer barulho.” 

in, https://www.publico.pt/2016/11/25/culturaipsilon/noticia/fat-power-1751917 [consultado em 29-07-2023]

Concluindo, A gorda é um romance muito bem escrito, com uma narrativa escrita de forma original, poderosa e marcante. Li-o quando o comprei e reli-o, agora, por ter sido o livro de julho do Clube de Leitura da BM de S. João da Madeira. Das duas vezes, fiquei fã da autora.


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