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O dia nasceu fosco, apesar de ser dia de festa. No parque, as árvores despidas não se mexiam. Parecia que a vida parara. Só o rio aparentava ter vida e continuava a correr, indiferente ao dia e a tudo o que se passava na cidade.
Ali, a velhinha (ou talvez não fosse tão velhinha assim), qual farrapo humano, arrastava-se pela rua, fustigada pela solidão, cansada da sua cama de chuva com lençóis de vento. Mendigava amor. Mas, nem uma mão estendida, nem um abraço se via. Todos se tinham recolhido no seu egoísmo, apenas preocupados com as prendas que ainda não tinham comprado. As montras pareciam insultá-la, com tanto brilho dourado e azul prateado a contrastar com os remendos das suas roupas, com as suas mãos calosas, com o seu magro rosto vermelho de frio, com os seus olhos tristes sulcados pelas lágrimas de uma vida tirana. E via nestas montras a sua fome projetada em cada luzente bolo-rei.
Entretanto, Amélia saíra de casa para fazer umas compras rápidas. Precisava de meia hora de estacionamento para o seu carro. Meia hora! O tempo que demoraria a fazer as compras, tempo que teria de pagar. Fosse esse o mal maior!
Apercebeu-se da velhinha que, vagarosamente, fazia o seu percurso. Na rua ouvia-se uma suave melodia de Natal. “Noite Feliz! Noite Feliz”. Porém, as moedas não entravam no seu bolso, para que ela tivesse o vislumbre de alguma felicidade. Tinham outro destino. Alimentavam máquinas!
Amélia sentiu-se mal. Enquanto se dirigia ao parquímetro para lá depositar umas moedas, a velhinha aproximou-se. Uma velhinha que, a essa mesma hora, sozinha, só pensava nos seus, os três netos e a filha. E pedia ajuda para lhes dar de comer.
(Há lares nus, rotos, mais gelados do que a neve!)
Amélia sentiu-se terrivelmente mal! Cada iguaria que iria comprar, teria um sabor amargo. Ela dispunha-se a alimentar a máquina. A velhinha não tinha como alimentar a família.
Uns metros à frente, um de cada lado da rua, dois homens fardados vigiavam ferozmente os carros estacionados. E multavam todos os que não exibissem o papelucho das malditas maquinetas. Alguns condutores teriam ido, provavelmente, apenas tomar um simples café ou dar um rápido recado. E o dia saiu-lhes caro. E os homens agiram assim, como lobos esfaimados atrás da presa. E era véspera de Natal! Mas, fosse esse o mal maior!
Não houve mais ninguém para perguntar à pobre mulher se estava bem ou mal. Apenas Amélia a olhou e, através de um sorriso, disse-lhe enquanto lhe mostrava uma nota:
- Venha comigo!
Dirigiram-se ambas a um dos homens fardados. Amélia conteve-se para não gritar e conseguiu falar com toda a calma possível.
- Vê esta nota? Vai direta para o bolso desta senhora que vive o Natal da desolação sem um queixume. A máquina não vai receber um único cêntimo meu. E não se atreva a deixar uma multa no meu carro! Tenha um feliz Natal!
E os sinos continuavam a tocar. É Natal! É Natal! É Natal!...
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