Há um ano, comecei a escrever neste espaço, nesta casa que, agora, sinto como minha. E o meu segundo texto publicado aqui teve Abril como tema. Um ano depois, repito o tema. Abril nunca se esgota. Abril tem dentro dele a liberdade.
Há 47 anos, em abril, conquistou-se a liberdade em Portugal, após um regime de ditadura que durou 48 anos. E, só aí, me apercebi, efetivamente, que ela existia. Era eu uma criança com 13 anos, sem nada saber do mundo.
Antes do dia 25 de abril de 1974, vivia no meu pequeno meio, rodeada de irmãs, primas e primos e divertíamo-nos, supúnhamos, livremente. Sem nunca ter ouvido a palavra liberdade. Sem imaginar, sequer, que essa palavra era proibida. Sem sentir que não a tínhamos.
Na escola não se falava disso, claro! A escola servia o poder reinante. Tudo o que interessava que soubéssemos era memorizado. E, se não fosse naturalmente memorizado, a impiedosa palmatória tratava do assunto. No manual único, aprendíamos o português, a história, a geografia, a matemática e a doutrina cristã. No mapa, apontávamos as serras, os rios e os caminhos de ferro. Ensinavam-nos a bordar, a coser botões, a tricotar. Mas não nos ensinavam a descobrir, nem a pensar, muito menos a contestar.
Em casa, também não se falava disso, apesar de algumas tentativas. Havia um disco de Zeca Afonso que o meu pai nos proibiu de ouvir. Porquê? Veio uma resposta lacónica.
Quando umas amigas (deduzi, mais tarde, que a família estaria envolvida, clandestinamente, com o partido comunista) disseram que a professora de Educação Visual era da PIDE, não percebi. Em casa, questionei a mãe. Veio uma resposta lacónica.
As minhas leituras de então levavam-me a mundos de aventuras e de grandes paixonetas. Divertiam-me e apaixonavam-me, mas não me ensinavam nada da vida real e, muito menos, de política.
Vivíamos encarcerados numa sociedade onde prevaleciam o obscurantismo, o preconceito e a falta de direitos. Onde o medo existia porque o perigo de uma denúncia espreitava em todas as esquinas. Mas eu só tinha 13 anos e o meu mundinho era dourado! E não imaginava que alguém lutava e sofria para que a liberdade chegasse um dia e fizesse o país recuperar os sorrisos.
Portanto, o meu pequeno mundo de ignorância continuou até à Revolução.
Não posso esquecer a sensação de ver, na televisão, a libertação dos presos políticos e, pela primeira vez, ouvir testemunhos das atrocidades que lhes fizeram nas prisões.
Não posso esquecer o ambiente eletrizante vivido no Liceu de S. João da Madeira que eu frequentava nessa altura. E houve professores que foram mesmo destituídos por estarem ligados ao regime fascista e que viram as suas vidas viradas do avesso de um dia para o outro.
O dia 26 de abril de 1974 foi um dia diferente. Respirava-se outro ar. Havia uma sensação de alívio e de libertação. Havia gritos de alegria. Até no vocabulário. Lembro-me de uma amiga dizer o que, na altura, era um palavrão impensável de se dizer em voz alta: “Agora já podemos dizer merda!”.
Bonitas eram as palavras novas que começaram a entrar no léxico de quem as desconhecia, como eu, inocente e ignorante das coisas do mundo. Palavras cheias de sonoridades, de significados, de poesia. Liberdade. Democracia. Direitos. Fim da guerra colonial.
E, só no ano seguinte, na escola, comecei as leituras que me fizeram abrir os olhos e a mente. Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes, e Constantino, guardador de vacas e de sonhos, de Alves Redol, foram os primeiros livros que me fizeram mergulhar na realidade portuguesa e refletir sobre as desigualdades sociais. Até esse momento, nunca me tinha questionado por que motivo as minhas colegas da escola não tinham continuado os estudos comigo, sobretudo a melhor aluna da turma, que fora trabalhar numa fábrica, com dez anos. Até esse momento, não me questionava sobre nada. Mas, a liberdade recém-conquistada permitiu chegar às estantes os livros proibidos e esses permitiram-nos aprender a refletir e a questionar, a criticar e a contestar. Os discos proibidos também puderam ser colocados na aparelhagem e ouvidos. E as canções de Zeca Afonso, Sérgio Godinho, Manuel Freire, Adriano Correia de Oliveira, Pedro Barroso, Ary dos Santos cantava-as eu em alta voz. Finalmente, tinha percebido o quanto "fazia falta avisar a malta".
A Revolução tinha chegado. O país começara a mudar. E, finalmente, os sonhos em incubação começaram a tomar forma. O amanhã já não era longe demais.
texto publicado na revista online "A casa do João"
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