24 de novembro de 2012

O QUE ACABEI DE LER

“A mãe pousou o livro nas mãos do filho. 
Que mistério.” 
Assim começa o romance. 
Este livro, deixado ao filho pela mãe, é o fio condutor que leva o leitor a entrar na ação e a desenvencilhar as linhas cruzadas que unem as vidas complexas das personagens, num país onde, entretanto, entrou a liberdade: “25 de abril de 1974 Ao fim da manhã, enquanto ela recolhia a roupa do estendal da casa de banho, já seca, o Constantino entrou esbaforido a dizer que estava a rebentar um golpe em Lisboa. A Adelaide sentou-se num bordo da banheira, a ouvi-lo. Não o entendeu logo.” 

Este livro percorre toda a primeira parte do romance e revela-se na segunda parte como sendo o Livro. E o mistério resolve-se para dar lugar a uma viagem pela Literatura universal. 

A ação decorre no mundo rural português da ditadura e o narrador, aparentemente heterodiegético, desnuda, de forma subtil e elegante, temas cruéis como o abandono de um filho: “Os olhos da mãe ficaram parados nos do filho até ao instante em que o seu corpo se virou e se afastou, regressando por onde tinha acabado de chegar.” (página 17); o trabalho infantil: “Havia quem atravessasse a vila para ver uma menina de onze anos a coser à máquina, cheia de desenvoltura.” (página 47); o incesto: “Quando aquilo começou a acontecer, ela não sabia do que se tratava, tinha onze anos e a mãe fazia-lhe pequenos vestidos para as colheres de pau. (…) Mais tarde, mais velha, quando aquilo estava a acontecer, ela facilitava os movimentos do pai, conhecia-os. (…) A mãe estava viva e, depois, a mãe morreu, nunca contariam a ninguém, e ele não parou. Ficou enjoada, ficou prenha, e ele não parou” (páginas 48/49); a gravidez precoce e o aborto: “Então, houve um momento em que toda a escuridão do quarto entrou dentro dela, encheu-a. Envelheceu. Quando o seu corpo rejeitou o que poderia ser uma criança e todo o seu sangue morto, a Lubélia ainda tinha dezassete anos, mas já era velha.” (página 79); a masturbação juvenil: “O Cosme tinha já as mãos dentro das ceroulas. Quando o Ilídio e o Galopim meteram também a mão dentro das ceroulas, houve um cheiro a transpiração, a pila mal lavada, que aqueceu o ar do barracão ligeiramente.” (página 31); a fuga para França: “Quase não se despediu da tia. A velha Lubélia estava a receber o calor do lume quando lhe bateram à porta. A Adelaide abriu e, na rua, no escuro, estava um homem parado a olhá-la. Quando lá chegares, escreve-me um postal.” (página 89); “ O que seria a França? A Adelaide sabia três coisas acerca do país para onde se dirigia” (página 105); o regresso dos emigrantes para passarem as “vacanças”: “Em chegados, o Cosme podia começar a queixar-se dos fogos ruges, das embutelhagens ou das auto-rutas. O pai dele mantinha um sorriso de não entender e o Cosme murmurava-me: É muito anciano, está próprio para toda a sorte de maladias.” (página 232) 

Livro é uma estória de culturas desencontradas. Emigrantes que partiram para França e querem regressar a Portugal. Filhos de emigrantes que nasceram em França e querem para lá voltar, rapidamente, quando estão de férias em Portugal. 

Livro é uma estória de amor, também ele desencontrado: “Se namorares comigo, dou-te um pombo, cem escudos e um livro.” (página 60); “Assim que chegou à França, escreveu uma carta ao Ilídio, Meu amor, não imaginas o quanto te quero bem, mas não recebeu resposta. Escreveu outra, Meu amor, estás zangado comigo?, mas também não recebeu resposta.” (página 143); “O Ilídio tinha esmorecido depois das cartas que escrevera à Adelaide e ao Josué.” (página 146) 

É um romance de escrita criativa, cheia de beleza: “Entrava uma estrada de luz pela porta aberta do barracão da palha. A tapada estava cheia de janeiro. Sem chuva, só a ameaça, o frio crescia dentro das pedras. Também as árvores eram feitas de frio até ao momento em que ardiam no lume e subiam pela chaminé de todas as casas da vila. A tapada cheirava a janeiro.” (página 31) 

E tem um final surpreendente. Daqueles que deixam o leitor a olhar para o livro e a perguntar-lhe qual te vai substituir?

Livro, José Luís Peixoto, Quetzal, 3ª edição, outubro de 2010

23 de novembro de 2012

ENCONTRO COM ALUNOS NA BM DE S. JOÃO DA MADEIRA

A biblioteca Municipal de S. João da Madeira associou-se às bibliotecas escolares, em outubro, para celebrar o livro e a leitura.


Convidada para uma conversa com alunos do 5º ano, foi com muito agrado que lhes pude falar de alguns livros da minha  vida, sobretudo os da minha infância e juventude que guardo religiosamente.
E, como não poderia deixar de ser, a conversa terminou com os livros que escrevi: Do cinzento ao azul celeste (2009) e O santo guloso (2012), ambos ilustrados por Helena Veloso e editados pela Calendário de Letras.

12 de novembro de 2012

VENTO QUE AS LEVE!!!

A melga escanzelada voou uns quilómetros ao encontro da melga anafada para lhe pedir ajuda. 
-Não aguento a penúria, não tenho mais onde sugar! 
-Isso pensas tu. Sê esperta, faz como eu! 
Obedecendo-lhe cegamente, picou e sugou onde pensava já não ser possível. Mas continuava escanzelada e cada vez mais subserviente à medonha melga gorda. 
Desanimada, questionou: 
- Eu sugo, sugo, e tu é que engordas? 
A resposta não veio. 
Veio o vento. Zangado soprou, nenhuma escapou. 

                                                                                          



                                   (desafio nº24 da Margarida Fonseca Santos)

QUEM MUITO FALA...

O doutor Leitão sabe tudo (pensa ele!) e nunca se cala. Apetece-me enfiar-lhe uma rolha, goela abaixo, ou pisar-lhe a língua, num almofariz, para o calar.
Parece programado, como despertador que não se atrasa, para dar todas as respostas, a qualquer hora. Como bola de ténis, as suas palavras voam, arremessadas com violência. E fala, fala. O que diz pica, qual vespa viperina. Que papel grotesco!
Apenas ignora que “quem muito fala dá bom dia a jumento”.

(desafio nº23 da Margarida Fonseca Santos)

6 de novembro de 2012

OUTONO



Há já algum tempo que ganhei o hábito de andar sempre com a máquina fotográfica na carteira. Compensa o peso. Nunca se sabe onde está a imagem, o momento, o inesperado, a simplicidade que vale a pena reter.
Trazer a máquina na carteira obriga a olhar e a ver o que normalmente passaria despercebido. Pormenores. Bocados.
No entanto, as cores do outono não passam despercebidas. Fulgurantes, arrebatadoras, chamam a atenção, pedem para serem fotografadas como modelos que sabem de cor a pose a fazer na passerelle.
Não entendo as árvores que se vestem de cor para, logo de seguida, se despirem e despedirem das suas roupagens.
Gosto de cores que enfeitiçam os olhos. E gosto de romãs e de diospiros. Outono é isto.





26 de outubro de 2012

"CADAVRE EXQUIS"

Foi com muito agrado que, em setembro passado, participei neste cadavre exqui, que circulou por quem andava nos jardins do Palácio de Cristal, durante o festival organizado pelo Bairro dos Livros, no qual o grupo do Clube de Leitores teve um papel preponderante.

Um "cadáver esquisito", em francês cadavre exquis, é um jogo coletivo inventado por volta de 1925 em França pelo movimento surrealista, pretendendo subverter-se o discurso literário convencional.  
Como funciona? Cada pessoa escreve duas linhas, dobra o papel tapando a primeira e deixando à vista apenas a segunda, e o autor seguinte continua o texto, sem a menor noção do que foi escrito. 
O resultado é hilariante.

"O Jardim é um palácio que floresce entre pavões e bancos
Confusões e felizes prantos que nos habitam o interior
Das recordações dos disparates e da evolução do mundo, que
Avança com ou sem razão das esperas que não acontecem
Pois o tempo, ou a falta dele, esse é o grande problema.
Estas esperas devem pois, ser bem calculadas.
Pois agir sem pensar não é de todo aconselhável
Assim, vejamos a situação:
O corpo estava a entrar em decomposição.
A cara estava branca, gelada, apesar do calor da noite.
A solidão estava marcada, bem presente.
E sono, muito sono realmente!
É no estado em que o homo sapiens se tem encontrado
Desde o início da sua civilização
Não interessa
Tudo era natureza
Tudo era morte
Tudo se torna em veludo azul
A coisa mais rara neste mundo, as pessoas pensarem por si próprias.
É raro mas quando acontece é mágico.
É assim que vivemos, sorrimos e amamos.
Por isso vamos a isso.
Mas cuidado… Os lobos e as meninas andam por aí
E sabem sempre o que querem!
Mas o que quererão afinal?
E será que alguma vez o saberão?
Essa é a questão filosófica que se impõe!
Essa e a questão da origem do universo das bandas desenhadas
que surgem nas bancas das papelarias sem ninguém saber como!
Como é que ninguém sabia dessa porcaria!
Tanta coisa para nada!
Aumentando a vontade de conquistar o infinito, sem porém
Julgar a vontade do(s) outro(s).
E acham-se importantes por fazê-lo!
Acho graça a essa gente, a nossa gente.
A nossa gente é capaz de tudo.
Andar desalinhada, só isso!
No dia em que descobrir o seu próprio poder, tudo acontecerá!
Somos uma gente capaz! Capazes!
A propósito de capazes, acho que ou capaz de comprar uma bimby…
Ando a pensar nisso há tempo… Acho que vou…
Comprar o tal livro da selva e, mergulhando na sua leitura
Vou viver a aventura que ele me sugerir
Não sei o que vi nele, nem o que me atraiu. O olhar transparente?
O sorriso nos lábios grossos? Não sei. Em todo o caso, embarquei na aventura.
O primeiro dia foi repleto de medos, inseguranças… e à medida que
O dia ia passando mais eu me libertava destes medos e deixava a energia
Fluir, e um sorriso aparecia na minha cara.
«Mandato de despejo aos mandarins da Europa! Fora!
Se quiserem ficar lavem-se!»
E lavem-se de preconceitos e opiniões
Lembra-te que é hoje!
Sim, hoje, porque é hoje que estás a ler isto.
Aliás, agora!!! Acabei de ler e vou “desencanar” o burro.
Alea jacta est! “Alea jacta est”.
Afirmação de boa memória e omnipresente
Nos livros de Asterix, que me encheram a infância.
A infância, aquele tempo em que não tinha horários e passava
O tempo a brincar!! Além do Asterix, havia a pequena sereia.
Mas o meu preferido era o Bocas. Um boi vermelho, vestido com
uma jardineira de botões amarelos. A sua melhor amiga, a tartaruga Mike
ficou muito feliz ao saber que o jardim estava lindo e cheio de flores.
Ao ver tudo aquilo quis abraçá-la e agradecer para todo o sempre.
No sempre a eternidade do amor e a salvação!
Mas um belo dia o canto de jades esfumou-se.
O encanto foi-se.
 E ele ficou com uma caixa cheia de sonhos vazios.
Pensou como gostava dela…
Como ela era injusta.
Nunca preparava o café a meu gosto.
E ainda dizia: “a culpa é tua”.
Mas nem sempre a culpa é nossa!
Não queiras pôr culpas onde não queremos!
Sentimento que inflama, que nos aprisiona.
Perdoa-te e vive com a tua alma por inteiro!"

4 de outubro de 2012

O QUE ACABEI DE LER

Se me pedissem uma única palavra para caracterizar Nunca me deixes, usaria o adjetivo estranho, até ao meio do livro. É estranho o leitor não saber o que são os dadores e os ajudantes. É estranha a educação dada no colégio. É estranho que as personagens tenham toda a liberdade sexual mas não possam ter filhos. É estranho que o colégio tenha um cuidado redobrado com a alimentação das crianças. É estranho o título que não condiz com o conteúdo. Ao longo da leitura, e ligando algumas pontas, fui fazendo as minhas conjeturas sobre o que seriam os ajudantes e os dadores. Acertei. A narradora autodiegética acaba por confirmá-lo. Mas, o papel desempenhado pelas personagens começa a ficar claro e uma ideia surge. Não, não é possível! E é então que se dá o nó na cabeça. O tema é demasiado polémico, não consensual, quase tabu, para ser abordado assim, de forma tão natural. Depois do meio do livro, substituo o adjetivo estranho pelo adjetivo chocante para caracterizar o livro. Foi um choque para mim quando as minhas suspeitas foram confirmadas. Afinal, o título tem toda a razão de ser e está ligado a uma atitude da narradora, enquanto criança, também ela chocante depois de ouvida a explicação. A palavra-chave foi escrita apenas duas vezes em todo o livro. Como se o assunto não fosse importante. Como se fosse muito natural. E é esta naturalidade com que o tema é abordado que faz abanar consciências (algumas, mais frágeis, poderão, mesmo, ficar abalroadas!!!), refletir (muito) e concluir que, afinal, a palavra certa para caracterizar o livro de Ishiguro é perturbador!

26 de setembro de 2012

UM SENTIDO PARA VIDA

Brincar aos anagramas!

Anda atrás de um sentido para a sua vida. Mas, tonta que é, nada a satisfaz e a vida só fará sentido se casar. Tanto se lhe dá que ele seja um mulherengo depravado sem emenda! 
Foi à rasca que conseguiu sacar dele a promessa do tão desejado casamento. Arcas abarrotadas de rico enxoval esperaram, durante um ano, o grande dia. 
O grande dia chegou mas, afinal, mostrou-se curto, muito curto. Quanto às arcas… nunca se abriram.

(desafio nº19 da Margarida Fonseca Santos, 77palavras.blogspot.com)

11 de setembro de 2012

DESISTIR OU RESISTIR?



Passou verão e inverno embrulhada na sua melancolia feita de muitas melancolias tecidas ao longo dos anos. Parou de sorrir à vida. Afastou o brilho do olhar. Deixou de querer. 
Desistir. Verbo medonho! 
Decidi, então, riscar no dicionário a palavra desistir e todas as suas derivadas. Tudo porque ela desistiu da vida e se deixou apagar, dia a dia, qual vela a arder lentamente e a desvanecer. 
Na folha rasurada do dicionário, escrevi em maiúsculas: EXISTIR. RESISTIR.

(desafio nº18 da Margarida Fonseca Santos, blogue 77palavras)

8 de setembro de 2012

LER FAZ MAL? QUEM DISSE?

ilustração de Dulce Esperanza Juárez

 - Não leiam muito, à noite muito menos, faz mal aos olhos. 
Esta era uma frase insistentemente repetida pela avó que se preocupava muito com a nossa saúde. Mas nós éramos leitoras compulsivas. Os livros espraiavam-se por toda a casa. Por onde passávamos, tínhamos um livro a olhar para nós e a suplicar-nos (não muito pois não era necessário!) para lhe pegarmos e o folhearmos e o lermos. 
- Faz mal, uma ova! – respondíamos, olhando-a por cima dos óculos! 

 (desafio nº17 da Margarida Fonseca Santos, 77palavras.blogspot.com)